‘Preamar’, de Haēma, é uma viagem musical pelo mar fora
“Há mulheres que trazem o mar nos olhos/ Não pela cor/ Mas pela vastidão da alma”, lemos no poema O mar dos meus olhos, de Sophia de Mello Breyner – autora pertencente à vaga de artistas que mostram uma afinidade entre a arte e o mar, bastião de impulsão para o povo português. Os versos aqui citados aplicam-se especialmente a Haēma, duo composto por Susana Nunes e Diana Cangueiro, que editam este ano Preamar, o seu álbum de estreia: uma viagem marítima em que cruzam a electrónica com o jazz e contam estórias sobre a imensidão azul que faz parte da nossa história.
As letras de Susana falam sobre as vicissitudes da vida, adornadas de metáforas marítimas sobre desbravar a vida em terra. Preamar abre com o relato de uma mulher a falar sobre o barco que o seu marido tinha, antes de ouvirmos entrar um teclado aquoso irrequieto que parece ditar a entrada da embarcação na água; é o início da viagem. E logo a seguir somos advertidos para os perigos marítimos, por meio do interlúdio “01101101 01100001 01110010” – cuja tradução do código binário significa mar – com as suas cordas tensas que lembram a marcha fúnebre de um caixão até à beira-mar, amainadas pela trovoada que cessa logo no início da faixa seguinte, a terna “Peixe-Voador”. Nesse tema ouvimos teclados doces, repletos de outros sons dispersos pelo instrumental, que se torna progressivamente mais reflexivo, acabando com uma confissão (“Sonhava um dia ser peixe voador/ Ao pé da lua mas sem sofrer de amor”).
A poesia de Preamar é enaltecida por acompanhamentos vocais bem conseguidos. Em “Penélope”, ouvimos um início bastante orgânico, a simular a natureza através de um bonito arranjo coral. Mas depois da inspiração inicial, a música torna-se exasperante; há sabedoria na fluída transição de uma realidade descontraída para um plano mais meditativo, acabando com versos de agouro (“O amor tece dores e camisolas de lã/ Que afagam a pele mas fazem doer o ar”). Ainda assim, o tom com que Susana canta a sua poesia acaba por se tornar semelhante em alguns temas de Preamar, retirando força às palavras e perdendo algum do intuito e propósito.
O principal atributo de Haēma, no entanto, não é a sua escrita, mas a capacidade que demonstram para fundir sonoridades, para confrontar mundos afastados, unidos sob o estandarte da música que o duo cria. “Lótus” apresenta-se como uma música tensa com uma bonita melodia semelhante a um sopro; mas de forma inesperada ouvimos surgir uma batida sincopada, imprevisível, que assenta bem na seriedade do tema. “Canto da Serpente”, um dos temas melhor conseguidos de Preamar, alia melodias digitais a uma metódica batida de trip hop que carrega a música para a frente, complementada por vozes que se cruzam entre si. E em “Terra Seca” parece que estamos mesmo no centro de uma tempestade que assola os navegantes: depois de Susana cantar os primeiros versos a música não pára por um segundo, alimentada por um ritmo ofegante que culmina num final contemplativo.
Além da sua fusão musical de géneros, Haēma estão focadas em transmitir uma temática específica. E apesar da primeira despertar algum interesse, nota-se ao longo de Preamar que a segunda transparece de forma mais difusa e acaba por suplantar a parte musical. Músicas como “Ilha”ou “Trapézio” parecem caminhar para algo sem nunca se revelaram no seu total esplendor, faltando-lhes assertividade e clareza na conclusão, assim como em alguns dos interlúdios do álbum. Momentos como “211217” juntam palavras de reflexão a um instrumental bonito mas em muitos casos estes intervalos interrompem forçosamente o ímpeto do mar e da viagem, conferindo uma identidade mais abstracta ao projecto,
No final desta viagem, o que mais apreciamos é a sua banda sonora. A qualidade das composições musicais de Haēma, especialmente visível na bela “Águas Mil”, é o seu maior trunfo. Preamar acaba com “FQ20171127”, um pósludio industrial e ambíguo, servindo de resumo ao álbum a forma aberta com que chegamos ao seu final. É um projecto que mostra as qualidades musicais de Susana e Diana – mas o seu talento ainda não veio totalmente à superfície, encontrando-se parcialmente à deriva na imensidão do mar. Ainda não é hora da maré cheia para Haēma, mas vale a pena fazer-lhes companhia até esse momento chegar.