Primal Scream: terapia eclética para aquecer o coração
Em 1970, Arthur Janov publicava a sua obra “The Primal Scream. Primal Therapy: The Cure for Neurosis”. Neste livro, o psicólogo americano descreve as experiências que realizou aquando da sua investigação sobre a terapia primal. Com início em 1967, Janov desenvolveu estudos com 63 pacientes ao longo de 18 meses – o período até à publicação do livro. A descoberta e desenvolvimento da terapia primal garantiram a Janov fama e sucesso, apesar das dúvidas levantadas pela comunidade científica.
O que é a terapia primal? Tendo como base o trauma, é uma psicoterapia que aponta a dor reprimida dos traumas da infância como causa das neuroses. É uma terapia bastante exigente, quase de choque, mas que teoricamente proporcionará elevado alívio psicológico. Janov defende que essa dor reprimida pode ser trazida de volta à consciência, através da recriação de incidentes específicos e expressando plenamente a dor resultante da terapia para, posteriormente, ser conduzida à resolução.
O paciente recorda e ‘revive’ uma experiência passada particularmente dolorosa – normalmente, ocorrida durante a infância – e expressa livremente a raiva e frustração que sente – que ao longo da vida terão sido reprimidas. Assim nasceu o Primal Scream, o grito espontâneo e desenfreado; aliás, o ponto de partida para a teoria de Janov foi este mesmo grito. Durante uma consulta, o psicólogo ouviu de um paciente o que descreveu como “um grito misterioso brotando das profundezas”.
8 anos depois, Bobby Gillespie começou a fazer umas pequenas jams com amigos da escola. Em 1982, surgem os primeiros registos de atuações ao vivo de uma banda denominada Primal Scream. A 6 de novembro de 2019, onze discos e vários membros depois, a banda de Glasgow chega ao Hard Club. Gillespie, agora com Andrew Innes (guitarra), Martin Duffy (teclados), Darrin Mooney (bateria) e Simone Butler (baixo), chega à sala de espetáculos do Porto numa noite de frio e chuva. O que vale é que traz consigo calor, o tipo de calor que só uma sala apinhada de gente, a mover-se a um só ritmo e a uma só voz, consegue proporcionar.
A primeira parte do concerto é feita pelos Fugly, três rapazes que tocam já praticamente em casa. Às 22h20, cedem lugar à banda escocesa. As primeiras notas de “Don’t Fight It, Feel It” fazem-se ouvir e a felicidade do público é imediatamente percetível. Gillespie entra com o seu fato de alta costura já caraterístico; o rosa choque enche o palco, ajudado pela velocidade a que o vocalista de move. “Swastika Eyes” é a segunda música da noite, carregada de crítica política e denúncia contra grandes corporações e governos.
“Miss Lucifer” poder-se-ia dizer que é uma mistura da sonoridade das duas músicas anteriores. Tem o psicadélico de Screamadelica e o protesto agressivo, a cair para o industrial, de XTRMNTR. Avançamos uns anos e vamos parar a “Can’t Go Back“. Não podemos voltar para trás, mas o futuro é bonito. Sim, este é o título do disco de 2008, mas também é uma boa previsão para o resto da noite. Os riffs acelerados da música permitem aos fãs mais desinibidos abanar todos os cabelos que têm e dar bom uso às cordas vocais. Cantam-se uh’s ritmados, acompanhados de palmas.
A banda pode não interagir muito com o público oralmente, mas estes escoceses não necessitam da palavra para criar aproximação. A intensidade da música é elevada, a emoção é vivida em toda a sua plenitude e Gillespie e Innes só não entram pela plateia dentro porque não podem levar os cabos consigo.
“Kowalski” é uma das obras primas da banda. Este primeiro single do trabalho de 1997 – Vanishing Point – seria uma boa interpretação sonora do grito primal. É uma expressão autêntica de paranoia, claustrofobia e desequilíbrio. A sala entrega-se por completo à música; Arthur Janov ficaria bem orgulhoso. O aplauso é estrondoso, conseguindo um “thank you very much” sorridente do mestre de cerimónias. O cinema está sempre presente: passa-se de Vanishing Point e Trainspotting para Out of The Blue. “Kill All Hippies” prossegue com o rock industrial e o sentimento de transtorno.
“We’re gonna play now a song that’s called ‘I’m Losing More Than I’ll Ever Have’”. Esta canção remonta ao segundo – e homónimo – disco da banda, sendo a única do alinhamento que não faz parte do Maximum Rock ‘n’ Roll: The Singles, compilação lançada este ano. “Higher Than The Sun” traz de volta o ambiente etéreo e psicadélico. Para contrastar, “Velocity Girl” – uma das primeiras músicas gravadas – acrescenta o jangle pop ao verdadeiro melting pot que são os Primal Scream. “Dolls (Sweet Rock and Roll)” salta 20 anos, aterrando diretamente em Riot City Blues. Gillespie aponta o microfone para que o Hard Club possa fazer ouvir os seus entusiasmados la la la’s.
A roda avança e a festa continua a queimar. “Burning Wheel” regressa ao ambiente único de Vanishing Point. Já “100% or Nothing” consegue pôr a sala a cantar a plenos pulmões. “Loaded” foi o single principal de Screamadelica; o remix da sétima música da noite liga a bola giratória e transforma o Hard Club numa discoteca do início da década de 90. O vocalista brinca com a letra e atira com “we’re gonna have a good time, Porto”. Os músicos libertam tudo de si em palco; Innes explode um dos grandes solos da noite, acompanhado dum excelente trabalho de bateria e de baixo. Gillespie abana a maraca enquanto dirige a plateia num “I don’t wanna lose your love” bem afinadinho.
A maraca prossegue e a temperatura sobe um grau a cada sacudidela. “Movin’ On Up” é um dos – senão o – grandes momentos da noite. Os instrumentos são levados ao clímax, o público berra a letra com tudo o que tem para dar. “My light shines on” é repetida ao infinito. Infinito é, também, um bom termo para descrever o sentimento vivido. Por entre as sonoridades house e alternativa espreita-se o gospel. Esta é uma música que permite, sem dúvida, a libertação total – pura terapia primal. “Movin’ On Up” e “Country Girl” podem ter 15 anos entre si, mas a essência das músicas é exatamente a mesma. Os Primal Scream podem ter passado pelas maiores atribulações, podem ter rodado membros e genres como um carrossel, mas uma coisa é certa: estes escoceses sabem dar um espetáculo como ninguém.
Após uma pequena pausa e muitas palmas do público, a banda regressa ao palco, trazendo consigo “Come Together“. A música de 10 minutos faz jus ao título e une a plateia para mais um momento de gospel – “come together as one”. Gillespie estica o microfone com um amplo sorriso na cara. Give Out But Don’t Give Up surge já apenas neste encore. “Jailbird” e “Rocks” proporcionam a este concerto um final verdadeiramente eletrizante. O Hard Club canta, dança, salta e sorri. A música não para, num último fôlego para chegar ao fim desta corrida. O grito primal é libertado, os traumas são resolvidos e terapia eclética dos Primal Scream aquece o coração do Porto nesta noite de novembro.