Príncipe: ‘É “A Chama e o Carvão” porque a primeira [parte] é mais vistosa e a segunda mais profunda’
Príncipe pode para muitos ser ainda um nome desconhecido; não sendo uma pessoa de grandes aparatos, Sebastião Macedo, que dá corpo ao projeto, a par de ser um dos membros constituintes de Ciclo Preparatório, lançou no final do ano passado o seu primeiro long play, “A Chama e o Carvão”. Uma coletânea de canções bem portuguesas, merecedoras de toda a nossa atenção, seja pelas texturas sonoras incorporadas, seja pelas referências ao passado português com homenagens a Amália e José Régio. Foi na tarde do passado dia 10 que nos sentamos com Sebastião, num café lisboeta, onde, ao som do jazz ambiente, ficámos a saber mais sobre a cara e a intenção por trás da música.
Para começar pelo princípio, o nome Príncipe, porque é que o escolheste?
Por nenhuma razão em especial, era preciso um nome e queria um que fosse mais impessoal, geral vá, que pudesse estar separado do que quer que eu fosse fazer. Surgiu esse e depois fui investigar e descobri que quer dizer princípio, já que o disseste há bocado, vem de princípio e promessa e assim.
Interessante. Ouvindo o álbum sempre pensei que tivesse alguma coisa a ver com [a musica] “O Desejado”, por falar de pátria e nação.
Sim, provavelmente começou por aí, mas depois acabou por tomar outro caminho que isso é um bocado limitado, mas fizeste uma associação certa aí, sim.
Relativamente a este primeiro álbum, sei que estás nos Ciclo Preparatório, o que pretendias que este álbum trouxesse em termos de comoção e expressão artística que achasses não estar a conseguir com a banda?
Por acaso o início, quando comecei a fazer isto, foi mais ou menos ao mesmo tempo [que com Ciclo Preparatório], mas era exatamente para explorar um bocado um lado completamente diferente, que pudesse ser mais profundo, explorar coisas sem limites, ser mais exigente nalgumas coisas. Às vezes quando estas a lidar com outras pessoas há paredes. E portas também, claro.
Acabas por sucumbir um bocado à vontade geral.
Exato, é saudável mas sozinho podes ser mais exigente, mas também é mais difícil. Precisava de saber se sozinho conseguia fazer aquilo, e começaram a aparecer umas ideias e foi assim.
A primeira vez que se ouviu alguma coisa de ti já foi em 2013 com a “Dois Terços do que Sei”
Sim, sim, exato.
Mas parece haver uma continuidade.
Sim, estas músicas surgiram todas nessa altura, quase; a ideia e o início. Mas depois até juntar todas num ambiente em que fizessem sentido foi um processo. E entretanto também fui fazendo outras coisas durante esses anos. Foi ali um processo acompanhado. Ia fazendo umas coisas, depois pegando naquilo e só agora é que acabei.
As primeiras músicas já tinhas lançado enquanto um EP self titled, pela Azul de Troia, e agora este álbum foi pela Leitura Tropical, se não me engano.
Foi independente, mas é a Leitura Tropical, constituída por uma pessoa só, que me está a ajudar com tudo o que não é musical.
Mudaste por algum motivo em especial ou foi por ser mais logístico?
Não foi nada de especial, foi um bocado isso de ser logístico, foi aquilo que fez sentido.
As músicas contidas no EP são a primeira metade toda deste álbum. O EP saiu em 2016. Lançaste-o como premonição do que estava para vir para o álbum ou ainda rearranjaste alguma música ou assim para depois incorporares e fazeres a continuação?
As músicas estão todas iguais, mas até chegar lá já tinha começado a segunda metade. Elas estavam de uma maneira e regravei-as de maneira diferente antes de as lançar, várias vezes, mas só quando lancei essas primeiras é que comecei a fechar a outra metade, a tomar decisões. Foram sempre um bocado as duas em conjunto que foram surgindo. A primeira foi mais para explorar caminhos e a segunda para tornar aquilo real, bem feito. Faziam sentido as duas juntas.
Parecem complementar-se bem.
Era suposto sim. A primeira metade era mais acessível. Por isso é que é “A Chama e o Carvão”. A primeira é mais vistosa e a segunda mais profunda, mais o que há por trás, aquilo que está lá sem aqueles folclores. É assim um bocado o sólido e depois o etéreo, uma dualidade.
Pois ia precisamente perguntar-te sobre o título do álbum, se tinha sido só por ser o nome de uma das músicas, mas agora já percebi.
Essa música [“A Chama e o Carvão”] nem tinha esse título, mas depois achei que até fazia sentido.
Tu misturas muito beats computorizados, de mpc e isso tudo com elementos mais tradicionais, por exemplo, a guitarra portuguesa na “Dois Terços do que Sei”. De onde te surgiu essa ideia de misturares esses elementos?
A ideia surgiu porque eu gostava tanto de um como de outro. Mas começou muito como tudo começa; é aquilo que tu tens no momento e depois começa a surgir ideia de converter noutros instrumentos e como poderia até fazer sentido comecei a ir buscar a guitarra portuguesa. Primeiro foi outra pessoa a tocar, que eu não sabia, e fizemos a “Dois Terços”. Disse-lhe mais ou menos aquilo que queria e ele conseguiu faze-lo. Depois queria que ele tocasse nas outras todas mas ele não tinha tempo então pedi-lhe emprestada a guitarra para experimentar e toquei à maneira que consegui. O importante era só tentar converter aquilo que queria, não tanto se era aquela pessoa a tocar ou se era executado daquela maneira.
E mesmo gostando das duas coisas e achando que se pudessem complementar, tiraste alguma influência de algum artista em particular para isso?
Artistas em particular talvez não, mas estilos sim. Os beats do hip hop, que eu quando era novo ouvia muito e era assim das partes rítmicas que mais gozo me dava ouvir. E a música clássica, com os elementos mais tradicionais, que sempre achei ser difícil fazer aquilo fluido só com instrumentos acústicos porque não têm continuidade. Instrumentos acústicos tu dás uma nota e aquilo acaba. Para fazer uma coisa que seja fluída com isso tens que escolher muito bem cada nota que colocas e como conjugas todos [os instrumentos] para fazer aquilo soar bem. Então foi um desafio, quis experimentar. E eu gosto desses contrastes, digital e tradicional, é uma coisa que destoa, é fixe. Não necessariamente nisto que eu fiz, mas no geral é. O contraste é uma coisa que acorda um bocado.
E quando estás a fazer música preocupas-te primeiro em fazer o beat, como base, tens uma melodia em mente, ou primeiro que tudo tens já uma letra em mente que precisas de um som para sustentar?
Todas as que disseste e mais outras, depende de cada música, não há uma linha assim específica. A forma como surge mais é com a guitarra ou o piano e depois vêm umas palavras, às vezes é exatamente o oposto. Mas o beat eu tento fazer depois de já haver alguma coisa, para não ser fechado, para acompanhar bem. Como é computorizado tens de pensar em cada elemento que está lá para soar natural e não como uma estaca que está ali a prender. Não há grande regra. As palavras acabam por ser aquilo que guia tudo o resto. Ainda que não comece por ai, assim que encontras algumas [palavras] que já aches que estão a ser fortes, o resto tem de seguir o que esta a ser dito, para elevar. Normalmente surge uma melodia, depois surgem umas palavras, e se essa melodia não fica bem com as palavras que encontraste então tens de procurar uma melodia nova. Aparecem várias ideias soltas e uma vez que descobres que faz tudo parte do mesmo, é descobrires onde elas encaixam.
Houve algum artista ou álbum a que te tenhas apegado mais enquanto fazias “A Chama e o Carvão”? Ainda que o álbum tenha sido feito mais dispersamente ao longo do tempo.
Muita coisa. Como foi ao longo dos anos vais ouvindo várias coisas e tendo ideias a partir disso inconscientemente. Mas se fosse para dizer algumas coisas mais específicas, houve coisas que fui ouvir de propósito. Hip hop dos anos 90, estrangeiro e português, musica clássica também, que não e uma coisa que oiça assim muito frequentemente. Muito folk dos anos 60 e 70, que fui descobrindo e tinha uns arranjos fixes, e também musica electrónica que foi saindo à medida que fui fazendo isto, mais contemporânea, que também me deu algumas ideias para reproduzir os sons de sintetizadores e assim através de elementos acústicos; há muitos elementos em instrumentos acústicos que podes explorar, por exemplo os martelos dentro dos pianos, as teclas a bater nas cordas, que podem não ser necessariamente melódicos, mas podes explorar para substituir sons digitais.
E fado? Porque fazes a adaptação da “Cabeças de Vento” da Amália.
Fado também ouvi algum para ver se conseguia fazer isso bem feito, mas só ouvi quase Amália.
E como surgiu a ideia de fazeres a adaptação da música?
Foi engraçada a história. Foi mesmo aleatório. Eu tinha essa música no meu computador, que tinha descoberto e achado ser das coisas mais bonitas que já tinha ouvido. Estava com um amigo meu, ele estava-me a mostrar uma música de reggae mas a internet encravou, então enquanto estávamos à espera pus essa música, e quando desencravou ficaram as duas sobrepostas, o reggae e a Amália, e eu achei altamente, fiquei logo com bué ideias. Tentei tirar a voz da música, mas não sabia fazê-lo, então peguei na guitarra e comecei a ver o que conseguia fazer assim com um beat mais bossa nova, reggae, e a partir daí surgiu a música.
Nalgumas músicas tu entras muito no panorama dos sonhos, revolves muito em torno disso, sonhos e acordar. A tua voz sobreposta aos beats e as guitarras dá assim um ambiente não só de vulnerabilidade mas também de nostalgia. Qual o teu mindset quando estavas a criar? Tentaste canalizar alguma vivência por assim dizer triste ou foi mais num sentido de encontrar esperança?
Eu acho que há coisas que nós não sabemos muito bem que existem dentro de nós. Numa vida citadina ninguém repara, que isto é sempre tudo a rir, mas alguém profundamente deprimido não aguenta nesta cidade. A verdade é que quando me deparei para fazer estas músicas, não forcei, e nunca foi a pensar em mim, foi sempre a pensar noutras coisas que tinham passado ao pé de mim e achei que podia fazer algo para tentar mudar isso. E quando começas a racionalizar essas coisas e a ver como isso se pode relacionar contigo, não sendo uma pessoa deprimida por natureza, é difícil às vezes pôr-me naquele ambiente. Mas era mais para ver se conseguia fazer o oposto, ver se conseguia ajudar alguém que estivesse assim a sair, foi isso que me motivou a fazer isto tudo sozinho. Foi um bocado isso que também me motivou a fazer a primeira parte. Para chamar, para as pessoas se sentirem bem em aceitar uma segunda parte. É muito pouco provável que isto aconteça, que vá alterar alguma coisa em alguém, mas a intenção foi essa.
Sim, o objectivo da musica também e comocionar e fazer as pessoas envolverem-se. Disseste agora que fizeste tudo sozinho, mas gravaste em casa ou conseguiste ir a algum estúdio?
Só essa música de 2013 é que foi num estúdio. O Henrique Amaro da Antena 3 conseguiu arranjar maneira de eu ir a um estúdio, gravei aquilo num dia e ficou e foi para os Novos Talentos Fnac. Tudo o resto fiz em casa. A primeira parte fiz na cave de um amigo meu que vivia ao meu lado, depois para mudar algumas coisas nessas músicas acabei por fazê-lo no quarto de outro amigo, que esse primeiro já não estava cá em Lisboa, que misturou as músicas. A segunda metade gravei quase toda em minha casa sozinho e tive ajuda desse meu amigo que vivia ao meu lado com as guitarras. Depois pedi as faixas todas, editei, e mandei ao que me ajudou primeiro, o Hugo Valverde, para misturar. Foi da boa vontade deles todos.
Relativamente à capa do álbum. É uma composição feita no computador, é uma foto? Aquilo infere imensas texturas, mesmo luz e profundidade.
Foi um amigo meu também, que e pintor e designer. Eu acho que ele o fez num computador. Eu pedi-lhe e fomos falando. Expliquei-lhe aquilo que queria, ele fez uns esboços no computador. Expliquei-lhe o que te expliquei a ti, que havia esses dois lados no álbum. A ideia que lhe tinha dado era uma cena a rasgar-se e a revelar o que estava por trás, mas nenhum de nós sabia o que haveria de estar atrás [risos]. Uma vez eu cheguei lá e ele disse-me “já tenho isto aqui feito” e mostrou me uma folha em branco, que eu primeiro fiquei um bocado “ehhh” mas depois pensei “espera lá, isto pode funcionar”, mas ele estava a gozar comigo. Depois acabou por ficar esse fundo em branco, é um bocado o princípio de tudo, cada um vê o que quer numa folha em branco. Pode ser um bocado banhada ou não, não sei, nenhum de nós conseguia chegar aquilo que queríamos. É próprio disto, essa procura, e depois chegas à última música e não há um fim, só alegria em poder continuar.
Sendo assim um bocado mais generalista sobre a música em Portugal agora, 2017 foi um grande ano para música portuguesa, viste artistas começarem a ter um tempo de antena que antes não tinham, nomes que antes eram pequenos a esgotar consecutivamente noites em vários sítios, por exemplo no hip hop, Slow j, com pessoas a ir de propósito ao SBSR para o ver, Luís Severo, a esgotar duas noites consecutivas no Teatro Ibérico, e mesmo Surma, todos eles a fazerem estilos de musica completamente diferentes. O que achas que está a acontecer no nosso pais, ou na forma das pessoas ouvirem música, que leva a que uma diversidade de estilos tão grande esteja a atrair mais pessoas, e a receber mais atenção que antes?
O que eu acho que se está a passar? Eu no fundo não sei bem. Há um tempo atrás houve também uma altura em que a música portuguesa tinha muito sucesso, se calhar não tinha era tanta variedade. É um bocado a época contemporânea em que vivemos, a forma de expressar, que é tudo muito mais indefinido. A partir do momento que se assume que tudo pode ser feito, é natural que comece a haver uma muito maior aceitação para coisas que não se espera. Começa tudo a ter uma visão mais nublada daquilo que pode ser considerado arte. O que é bom mas também pode ser mau, perde-se um bocado algumas coisas que são tradicionais e têm valor, porque está tudo à procura de formas de inovar. Mas no geral é bom, é um bom motor para explorar coisas que ainda não foram exploradas. Quase tudo nisto é imprevisível, se vai ou não ter sucesso, mas muitas vezes acaba por ser também um jogo de imagem e relações certas, ainda que a maior parte das vezes, quando o produto é bom de origem, não depende só disso das relações e da imagem, claro. Mas música portuguesa sinceramente não tenho andado muito muito a par. Sei mais ou menos o que se fala mas não ouvi quase nada ainda.
Há algum artista português em particular com quem gostasses de colaborar?
Eu lembro-me que dei uma entrevista, que foi para ai a única, e eu disse Capicua. Porque acho que devia ser uma mistura fixe.
E internacionalmente, em retrospectiva, face aos lançamentos de 2017, há alguma coisa que tenhas gostado particularmente que queiras recomendar?
Épa deve ter saído tanta coisa, que já nem me lembro do que saiu no início do ano. Mas assim a última coisa que ouvi e achei mesmo bem feito, foi o álbum dos The National, o “Sleep Well Beast”, achei bem fixe a maneira como se reinventaram. Fizeram aquilo que eu acho ser uma das únicas maneiras de continuar a inovar, texturas eletrónicas mas com vulnerabilidade e a inconstância dos sons acústicos. Achei mesmo um bom trabalho.
Conseguiste vê-los o concerto no Coliseu?
Queria ter visto, mas aquilo esgotou logo, fui só ao do Father John Misty. Foi fixe, nunca tinha visto.
Para finalizar, há algumas novidades de Ciclo Preparatório?
Para breve, sim, estamos a acabar agora umas coisas. Já está quase acabado, mas não sei quando via sair.
E a ti futuramente, onde é que as pessoas te podem ver?
24 de Janeiro, na Casa da Musica, Café Concerto. E o resto é só em Março, Torres Vedras e MusicBox, vou fazer a primeira parte de Cavalheiro. E para já é isso.