Problemas familiares
Sempre que ligam para minha casa é como se fosse a primeira vez que os meus pais ouvissem um telefone. Estamos a jantar, toca o telefone, a minha mãe ergue a cabeça, desconfiada, e diz “Ui, quem será?”.
Numa era em que os números que nos ligam aparecem nos ecrãs dos telefones e telemóveis, os meus pais ainda discutem sobre quem pode ser o autor da chamada. E discutem entre o momento em que o telefone toca e o momento em que a minha mãe percorre o corredor para o atendedor. Esses dez segundos são preenchidos de acusações mútuas sobre qual o pior lado da família: “Aposto que é a chata da tua mãe, nunca tem horas para ligar” ou “Vê lá se não é o teu irmão a pedir dinheiro”.
Pode parecer estranho mas o amor familiar não se expressa por palavras ou afetos. O amor familiar manifesta-se nas pequenas coisas. Aprendi isso com a minha mãe. Todas as vezes em que ela, sabendo que era a minha avó, mãe do meu pai, a ligar, me pedia para atender e dizer que ela não estava.
O amor familiar é incondicional precisamente porque as pessoas não escolhem quem lhes calha na rifa. Então vivem a adaptar-se, a aprender a gostar até do que não costumam gostar. A família é um fato-treino emocional: adapta-se a nós mas deixa-nos andar à vontade, sem saber muito bem quem é que somos na realidade.
Nem os jantares de família são iguais aos outros tipos de jantar. Começa tudo na preparação. A mãe arruma a casa para fingir que é muito mais arrumada do que na verdade é. Chegam os familiares e cada um traz uma coisa para o jantar. Há sempre uma tia que vacila e não traz uma sobremesa à altura. Nas duas semanas seguintes, os telefonemas entre a família são sobre essa tia achar que é mais do que os outros.
Até o jantar estar na mesa, as coisas são muito cordiais. Tudo assuntos triviais do dia-a-dia. Futebol, novelas, mexericos de uma vizinha qualquer. No fundo, a experiência do jantar de família só começa quando alguém decide jogar o primeiro jogo, o De qual familiar não presente vamos falar mal primeiro?
Seguem-se vinte minutos a malhar na tia Zira que é uma tinhosa que se deixa ir pelo marido. A conversa aquece e sucedem-se uns copos de vinho. E com o álcool vem a nostalgia. Joga-se, então, ao segundo jogo, o Qual familiar morto vamos recordar primeiro?
Quando a noite parece uma espiral de tristeza e más memórias, surge o herói improvável: o tio bêbado. É o tio bêbado que vai quebrar a dinâmica depressiva com uma piada porca que vai pôr toda a gente a rir-se. Se for um jantar normal, vai ser só uma piada sugestiva. Vira-se para a mulher e diz-lhe “Logo, eu digo-te”. Se a ocasião for
mais especial, como um jantar de Natal, por exemplo, a ocasião exige uma piada mais elaborada. Aí, ele vai dizer para o ar, “A tua tia tem mais paciência com as rabanadas do que com o marido. É que comigo ela não espera três dias para o cacete ficar rijo”.
Fica tudo histérico, quase a chorar de tanto rir, e a noite segue até o último jogo. Um jogo perigoso de batata quente. Quem fica com a avó no próximo fim de semana?