Psiquiatria e privação de Liberdade

por Henrique Prata Ribeiro,    8 Julho, 2021
Psiquiatria e privação de Liberdade
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Ainda que pareça absurdo escrever acerca de uma especialidade médica e privação de Liberdade, no caso da psiquiatria esta questão é um imperativo moral. 

Desde a época na qual se ignorava por completo a existência das doenças mentais, que os “loucos” eram vítimas de violência e privação de Liberdade. A sociedade evoluiu e os Direitos Humanos ganharam espaço. A medicina evoluiu e a “loucura” passou a ser reconhecida como doença mental. Infelizmente, esta ainda não é uma realidade para a totalidade dos países do mundo, existindo lugares nos quais os doentes mais graves ainda são mantidos em condições sub-humanas. Escreverei apenas acerca da situação portuguesa.

A psiquiatria é a única área na qual — sempre por ordem judicial, ou seja, por decisão de juízes — uma pessoa pode ser indefinidamente privada de Liberdade em Portugal. Isto pode acontecer não através de um, mas sim de dois mecanismos: internamento compulsivo; aplicação de medida de segurança para um crime grave. Ainda que este facto possa parecer discriminatório em relação aos doentes psiquiátricos, é importante referir que esta privação de Liberdade apenas é possível por mecanismos existentes para sua protecção. Dedicarei uma crónica futura às medidas de segurança, escrevendo hoje acerca do internamento compulsivo.

O internamento compulsivo é um internamento que é feito por ordem judicial e que é regulado pela Lei de Saúde Mental, a Lei 36/98. Este tipo de internamento existe pela natureza de algumas doenças psiquiátricas, que fazem com que as pessoas que delas sofrem possam, por acção dessas doenças, perder a capacidade de interagir e avaliar o meio circundante de forma adequada, podendo colocar-se a si ou a outros em risco. O mais fácil de compreender é o caso dos doentes que se encontram psicóticos, que pela definição da própria doença têm uma quebra de contacto com a realidade — como já explicado noutra crónica, na maioria dos casos têm a certeza de estar a ser perseguidos e ouvem vozes que não estão a ser emitidas — e podem por via dessas circunstâncias apresentar risco. Esta possibilidade de risco é igualmente uma realidade para uma pessoa numa fase maníaca de uma doença bipolar — nesta, há tendência para ideias megalómanas e desinibição. Igualmente, o risco pode existir no caso de uma pessoa que sofra de uma depressão grave, na qual exista uma intenção de pôr término à própria vida. Pela variabilidade de quadros, em vez de listar um conjunto de doenças que poderiam permitir esta modalidade de internamento, excluindo outras, optou o legislador por, através da utilização do termo “anomalia psíquica grave”, permitir o livre exercício da medicina aos psiquiatras, mantendo a devida autoridade judicial dos juízes para decidir acerca da necessidade da privação de Liberdade. A Lei determina que há dois tipos de internamento compulsivo; um de perigo e um regular/tutelar. Idealmente utilizar-se-ia com mais frequência o segundo, por se considerar que é menos coercivo, mas a prática acabou por conduzir a que a grande maioria dos casos acabem por chegar aos cuidados de saúde pela via do internamento de perigo. Neste, apenas podem ser internadas as pessoas que apresentem perigo iminente para si, para outros, ou para bens patrimoniais relevantes, seus ou de outros, por via da anomalia psíquica grave de que padecem e que recusem submeter-se ao necessário tratamento. Se estes pressupostos não se encontrarem preenchidos, não poderá essa pessoa ser submetida a tratamento caso tal não seja da sua vontade. Isto mostra o carácter de salvaguarda dos interesses individuais que a Lei apresenta, ainda que rejeitando uma abordagem paternalista, ao não permitir que uma pessoa seja submetida a tratamento meramente por se encontrar doente

Quando são preenchidos os requisitos para que se accione o internamento de perigo, o psiquiatra de urgência assina um documento que é enviado para tribunal – a avaliação clínico-psiquiátrica. Este documento dará ao juiz a informação necessária para se pronunciar definitivamente acerca desta modalidade de tratamento. O juiz delibera num prazo máximo de 48h e é imediatamente nomeado um defensor ao portador de anomalia psíquica. Em qualquer momento dentro do processo, os Direitos do internado são salvaguardados ao máximo, existindo até a hipótese de este requerer um habeas corpus. Por forma a garantir que a privação de Liberdade ocorre no menor grau possível e que não pode esta modalidade de tratamento ser utilizada de forma indevida, são obrigatórias reavaliações: ao fim de 5 dias, por dois psiquiatras que não tenham participado na avaliação inicial; a partir daí, a cada dois meses, dois psiquiatras têm de reavaliar o estado de saúde da pessoa privada de Liberdade a fim de se pronunciarem acerca da necessidade da manutenção desta modalidade de tratamento. A maioria dos doentes recupera o seu grau de funcionalidade em poucas semanas, mas o texto de Lei permite, em teoria, que o procedimento de reavaliações, caso os pressupostos assim o determinem, prive os doentes de Liberdade de forma contínua e indefinida. A meu ver, esta é das maiores responsabilidades que a sociedade confere aos médicos psiquiatras (ainda que exista por via da autoridade judicial).

As entidades que podem estar envolvidas na condução de um cidadão ao serviço de urgência para que seja avaliado são as autoridades de polícia ou de saúde pública, através de mandado. A polícia poderá ainda, caso pela situação de urgência e de perigo na demora não seja possível emitir um mandado, proceder à imediata condução da pessoa em causa. Têm legitimidade para requerer o internamento compulsivo as pessoas que tenham igual legitimidade para requerer a sua interdição (regime à data substituído pelo Regime do Maior Acompanhado), as autoridades de saúde pública e o Ministério Público. Os médicos poderão igualmente requerer o internamento à autoridade de saúde, tendo os directores clínicos dos estabelecimentos essa legitimidade quando a necessidade se verifique no decurso de um internamento voluntário. Quando ocorre condução sem mandado por parte da polícia, é obrigatório que se comunique esse facto ao Ministério Público. Segue a mesma via uma avaliação clínico-psiquiátrica (o documento que contém a avaliação do psiquiatra) concluindo pela não necessidade de internamento. Estes procedimentos existem para garantir que os Direitos dos doentes são respeitados ao máximo e em todos os momentos. Com o mesmo objectivo, aquando o internamento compulsivo de um portador de anomalia psíquica, é obrigatório que assim que cessem os pressupostos que lhe deram origem, este seja imediatamente restituído à Liberdade. Mais ainda, pode o internamento ser substituído por um tratamento obrigatório, mas no qual o doente regressa à sua casa — muito utilizado com doentes psicóticos a necessitar de cumprir medicação injectável — chamado de tratamento compulsivo em regime ambulatório. Esta via existe para minimizar o risco de abandono de medicação, que muitas vezes conduz a agudizações destas doenças.

Há, no entanto, algumas questões que é importante que se discuta no que concerne esta Lei. Uma delas é o facto de o Estado não pagar a medicação aos doentes que se encontrem em regime de tratamento compulsivo em ambulatório. Dever-se-á levantar a questão de, uma vez que esse tratamento é coercivo, poder não ser ético que se obrigue o doente a pagar por ele — visto que todos os tratamentos no período de internamento são pagos pelo Estado e este regime pretende ser uma substituição de internamento por tratamento na comunidade. Outra questão que é a meu ver incompreensível, representa um atropelo de Direitos Humanos e deve ser resolvida com brevidade, é o facto de os doentes internados neste regime ficarem dependentes das condições dos serviços de psiquiatria para ter contacto com o espaço exterior; nas enfermarias, pelo risco de fuga e pelo risco de tentativas de suicídio, as janelas não abrem. Por esse motivo, caso os serviços não se encontrem equipados com pátios, os doentes não têm qualquer forma de acesso ao espaço exterior, ficando para isto dependentes da disponibilidade e boa vontade dos profissionais de saúde que lá trabalham. Como nem todos os serviços sem espaço exterior têm as necessárias condições para acompanhar os doentes lá fora, estes são sujeitos a uma enorme e injusta arbitrariedade. Uma pessoa encontrar-se doente e ver-se confinada a um espaço completamente fechado pela totalidade do seu internamento não pode ser satisfatório e certamente não é benéfico para a sua saúde mental, que estamos a tentar tratar. É importante relembrar que estes doentes não podem pedir a sua alta contra parecer médico, porque estão a ser obrigados a cumprir o internamento.

A meu ver, ambos os problemas que levanto terão oportunidade de ser solucionadas em breve, existindo especial urgência na reversão da excessiva privação de Liberdade de que os doentes são alvo. Esta apenas é possível pela forma como se encontra escrito o número 4 do artigo 8.º da Lei de Saúde Mental, que está a ser revista. Embora concorde que não seja ideal legislar acerca de um procedimento (uma questão que venho discutindo com alguns membros do grupo de trabalho que se encontra a rever essa Lei), penso que não se deveria perder a oportunidade e alterar este artigo, atribuindo um período mínimo diário de “permanência a céu aberto” a estes doentes, à semelhança do que acontece com os presos, que têm direito a 2 horas diárias. Assumindo que há circunstâncias nas quais os doentes podem não reunir as condições para as saídas, esses casos deverão ser a excepção e terão de estar devidamente justificados pelos médicos assistentes. A combinação da revisão desta Lei com a alocação de cerca de 85 milhões de euros do Plano de Recuperação e Resiliência à área da saúde mental é a oportunidade perfeita para que se legisle e se crie as necessárias condições à equidade entre os doentes de todo o país.

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