“Pura Sangre”, de Luis Ospina, dispensa a excecional afiação dos caninos
Em parceria com o Doclisboa, a Cinemateca Portuguesa apresentou-nos este ano uma retrospetiva integral de um dos nomes maiores do cinema colombiano, Luis Ospina. O cineasta destacou-se na área do documentário, contudo, as suas incursões pela ficção revelam do mesmo modo a sua singular visão e aptitude para as imagens em movimento. Longe da praxis autoral clássica, e sendo Ospina um apreciador do cinema de série B norte-americano, estas obras inserem-se na tradição do chamado cinema de género. No caso da sua primeira experiência, Pura Sangre (1982), os filmes de vampiros servem de inspiração para um retrato da relação predatória entre as classes sociais mais altas e mais baixas.
Distanciando-se das mais tradicionais histórias de vampiros, Pura Sangre relega por completo o elemento sobrenatural: no filme, um velho magnata dono de uma exploração de açúcar é diagnosticado com uma rara patologia hematológica cuja terapêutica consiste na regular execução de transfusões de sangue de jovens ou crianças saudáveis do mesmo sexo que o doente. O seu filho e atual gerente da empresa, ao descobrir provas incriminatórias de crimes sexuais praticados por três dos seus funcionários (incluindo uma enfermeira, responsável pela parte técnica da empreitada), chantageia-os para que obtenham o sangue procurado. Para o efeito, os três recorrem a diferentes métodos, desde o simples rapto para uma viatura ao recurso à cocaína para aliciar jovens num bar.
Progressivamente, é-nos mostrado o caráter perverso de todas as personagens: o vampirismo denota em si mesmo uma relação de poder sobre outrem, porém, não obstante este ser o motor da cadeia de explorações sucessivas que observamos, paralelamente testemunhamos outros abusos de poder, tanto por parte do gerente, que está envolvido num corrupto esquema de contrabando, como dos seus funcionários, que, antes de extrair o sangue das suas vítimas, as violam. O velho moribundo, concomitantemente, refugia-se no seu quarto e nos filmes que vê no seu pequeno televisor. Seria fácil ilibar este homem, pois, excetuando um comentário sobre a necessidade de “conter” os trabalhadores revoltosos – e um outro momento que discutirei mais adiante -, com base nas suas ações concretas, dificilmente o poderíamos acusar de algo, mas o facto de o efetivo vampiro ser ele não é desprovido de propósito: primeiro pelo seu estatuto privilegiado, segundo pela sua displicência, o velho é culpado de dois crimes.
Uma das marcas do génio de Pura Sangre é precisamente a construção desta personagem. O facto de o sangue não alimentar qualquer uma das suas atividades, dado o estilo de vida praticamente vegetativo que o ancião leva, mas simplesmente a sua vida, que lhe é permitido prolongar pela abundância da sua riqueza, sugere que a mera existência de uma classe favorecida prenda diretamente o povo, cujo sacrifício é essencial. De ainda um outro ângulo, a juventude das vítimas implica o dano do novo em prol da velha ordem, isto é, equivale esta predação a um entrave ao progresso. Simultaneamente, ao tomar abrigo no cinema, o magnata recusa-se a questionar de onde vem o sangue que o mantém vivo, espelhando a condição do espetador. Ao ver Citizen Kane (1941), de Orson Welles, o sénior comenta, comicamente, que os filmes sem cor o aborrecem e ordena a enfermeira a nunca mais lhe trazer filmes assim. O filme proclama, deste modo, uma convocação para a luta dos seus espetadores, diz-lhes que saiam do escuro da sala de cinema para ocuparem as ruas, criticando a toxicidade da perspetiva perversa da arte como entretenimento e, sobretudo, como refúgio da realidade.
O poder das imagens é, aliás, um tema que surge em diferentes aspetos do filme, algo de que o momento em que aprendemos que um dos motoristas envolvidos nos assassínios tem na profissão de fotógrafo retratista uma segunda ocupação é exemplo. A situação é surreal: no regresso de uma longa noite de trabalho, uma vizinha pede-lhe que tire o seu retrato por ocasião da sua primeira comunhão. No seu estúdio, ele instrui a pequena a colocar-se numa posição a simular uma hierofania, controlando a forma como, segundo aquele retrato, ela aparecerá ao mundo. Enquanto isto, outros miúdos que vasculham o estúdio encontram fotografias das suas vítimas. Ainda dentro deste tema, convém referir o episódio protagonizado pelo velho e a enfermeira acima aludido: enquanto a segunda troca de roupa, o primeiro observa o seu corpo nu pelo seu ecrã e diz-lhe que uniforme utilizar. Da mesma forma que nas violações, a diferença de poder aqui manifesta-se através da sexualidade e da invasão do corpo do outro, uma ideia muito bem explorada por Godard em Numéro Deux (1975).
Na sociedade retratada por Pura Sangre, a mão do poder utiliza várias ferramentas para violentar não só os corpos como as mentes, em gestos de terrorismo psicológico para com as massas. Nela não há o mais mísero sinal luminoso. Por essa razão, este é um filme tenebroso e, como grande parte dos mais exatos retratos da contemporaneidade, gelado. Os vampiros dispensam a capa, a noturnidade e a excecional afiação dos caninos. Por vezes o medo, ao contrário do que se diz, não é causado pelo desconhecido, mas pelo quotidiano.