“Putin’s Witnesses”, de Vitaly Manskiy, ou os interstícios da guerra

por Diogo Simão,    29 Março, 2022
“Putin’s Witnesses”,  de Vitaly Manskiy, ou os interstícios da guerra
“Putin’s Witnesses”, de Vitaly Manskiy
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Este artigo pode conter spoilers.

Vitaly Manskiy escreve na sua “Nota do Realizador” para o documentário “Putin’s Witnesses”: “Fui testemunha e participante na operação que levou Vladimir Putin ao trono de Moscovo. O meu testemunho é importante não só para a sociedade russa, para curá-la de uma doença avançada, mas também para outros países: para evitar que percam a sua liberdade.”

Estas linhas sumarizam a utilidade objectiva do filme vencedor na categoria de Melhor Documentário no Festival de Karlovy Vary, em 2018. Manskiy assinou 17 documentários na sua carreira, trabalhando como chefe do departamento documental para a televisão nacional russa. Em 1999 tinha a seu cargo a produção de vários perfis políticos: do antigo líder soviético Mikhail Gorbachev, do presidente russo Boris Yeltsin e do então primeiro-ministro do governo, Vladimir Putin.

“Putin’s Witnesses”, de Vitaly Manskiy

“Putin’s Witnsses” foi editado a partir de registos de conversas privadas e filmagens produzidas para a campanha eleitoral de Putin. O próprio Manskiy filmou, sozinho, praticamente todo o documentário entre 1999 e 2000: acompanhando a resignação de Yeltsin, a presidência interina, campanha e eventual eleição democrática de Putin. Esse lado da acção é contrastado com imagens de arquivo da família do realizador, mostrando a perspectiva da sua mulher (a produtora Natalia Manskaya) sobre as jogadas políticas de que é testemunha.

À luz de toda a informação que foi surgindo durante as gravações — e ao longo dos anos que se seguiram — Manskiy viu-se confrontado com perguntas para as quais não obteve respostas transparentes. A violência e corrupção na Rússia de Putin têm sido objecto de investigação. O seu tempo ao serviço do KGB pode ter-lhe concedido mais do que um conjunto de capacidades particulares. O jornalista e historiador José Milhazes escreve no seu livro “Putin — Em busca da eternidade” que “Segundo alguns especialistas, 80% dos cargos superiores do Estado [russo] e da elite de negócios são originários do KGB-FSB. Esta será, sem dúvida, uma das principais razões da chegada de Vladimir Putin ao poder em 1999.”

É, por isso, surpreendente ver neste documentário, as decisões políticas de Vladimir a serem questionadas numa situação íntima. O bravado que caracteriza o chefe de estado russo desaparece, quando a lógica sob a qual ergueu as suas ideias políticas é desmontada por meia dúzia de questões: Putin é muito melhor a mentir do que a desculpar-se. Uma antiga professora do presidente emociona-se ao reencontrá-lo. Abraça-o, beija-o e ao despedir-se afirma: “Lembra-te: estarei sempre a ver tudo o que fazes!” Não é possível deixar de imaginar o que poderá esta tutora achar das ações recentes do seu pupilo.

As alegações do envolvimento do presidente russo nas explosões de apartamentos civis em Moscovo no ano de 1999 (acto terrorista atribuído aos chechenos e que, consequentemente, aumentou a popularidade de Putin) colocam um ponto de exclamação em todas as interrogações que Manskiy apresenta ao longo dos 110 minutos de filme. “Com Putin no poder, a vossa liberdade de imprensa está garantida!” As promessas de Boris Yeltsin aos jornalistas, aquando da sucessão, envelheceram muito mal. Numa entrevista ao Público, Vitaly confessa que: “Se não fizer isto, a vida não tem sentido, não posso fazer filmes que não levem em conta o que me rodeia. Sei que não posso mudar o mundo, mas não posso ficar parado a ver o que está a acontecer sem tentar fazer algo.” Em retrospectiva, parece altamente improvável voltarmos a ter registos tão próximos de figuras que marcarão, no mínimo, o século, no máximo, a História. O mea-culpa de Vitaly Manskiy pelo seu envolvimento em tudo o que filmou é sublinhado pela sua voz-off: ora sarcástica, ora profética; ora assustada, ora incisiva. 

“Os que não aprendem com a História, estão condenados a repeti-la.” Esta frase é atribuída ao escritor e filósofo George Santayana. No seu livro “Soliloquies in England and Later Soliloquies”, o autor e filósofo espanhol reflecte: “Apenas os mortos viram o fim da guerra.” O paralelismo faz-se sozinho: é através da lente atenta de Manskiy que nós, os vivos, podemos testemunhar o início da guerra que temos à porta. Putin’s Witnesses está disponível na FilmIn e deve ser visto.

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