Qualquer coisa
Alguém publicou um vídeo comparando a cena de dança do filme “8 ½”, de Fellini, com a que Tarantino mimetizou em “Pulp Fiction”. Muitos criticaram a publicação, considerando um plágio descarado, enquanto outros vangloriavam a homenagem do cineasta americano ao ídolo italiano. Guerras de rede social à parte, fiquei satisfeito por todos emitirem uma opinião.
Bem diferente a reação que obtive quando decidi homenagear Tony Manero do filme “Saturday Night Fever”, no sábado passado, no dancefloor da disco mais trendy da city (calma, prezado leitor, esta não é uma crónica sobre lifestyle — estou apenas a tentar que a escrita demonstre o meu estado de espírito naquela altura: sentia-me cool).
Além de gargalhadas difusas e dedos indicadores anónimos não logrei outro retorno, pelo menos pessoalizado. Fiquei um pouco chateado, confesso, porque dei tudo naqueles moves ao som dos Bee Gees. Decidido a abandonar o rooftop, dirigi-me ao elevador do arranha-céus, desiludido pelo facto de o mundo não dar a real importância ao meu potencial dançante. Preparava-me para carregar no botão com o número pelo qual detinha maior empatia quando uma miúda me pediu para “segurar a porta”. Durante o paradoxal trajeto descendente do ascensor (e do meu amor-próprio), a miúda meteu conversa. Talvez para aliviar-se da ansiedade daquele silêncio confrangedor ou para confortar a minha notória tristeza, o certo é que a moça afirmou:
— Vi a sua dança há pouco…foi qualquer coisa!
E foi aí que, como dizem os anglo-saxónicos, o cocó atingiu a ventoinha. “Qualquer coisa”? QUALQUER COISA O QUÊ? Qualquer coisa de bom? Qualquer coisa de mau? Odeio quando qualificam qualquer coisa de “qualquer coisa”! Com um milhão de adjetivos na língua portuguesa, por amor de Pessoa! Como seria A Metamorfose de Kafka se o autor classificasse o insecto apenas como “qualquer coisa”? E se o Ramalhete d’Os Maias fosse descrito desta forma: “aquilo era um casarão que era realmente qualquer coisa”? Imagine-se que a Forma de Vida da Amália era antes “qualquer coisa” em vez de “estranha”, ou que a Garota de Ipanema fosse coisa “qualquer” em vez de “mais linda”. E os poemas de Camões*? “Qualquer coisa” é um punhal cravado no seio de uma descrição, o purgatório insosso de uma análise; é o definhar da comunicação, a morte da língua, o fim da humanidade. A dança que eu fiz há pouco não foi “qualquer coisa”, minha menina. Foi maravilhosa, enleante, esplêndida, sensual, entusiástica, espampanante, original, clássica e em simultâneo moderna; até divertida ou de chorar por mais. Aceito que visões menos sofisticadas, pelo contrário, a classifiquem como horrível, anacrónica, espalhafatosa, cómica, infernal, miserável, humilhante, ou, simplesmente, de chorar. Até admito que algum choninhas indeciso que não se quer queimar a qualifique como “inesperada”, “extraordinária” ou “curiosa”. Tudo menos a neutra, insípida e que nada nos diz “qualquer coisa”.
— Sabes o que é qualquer coisa? — perguntei, colocando a tocar no telemóvel um medley que preparei durante toda a vida — Sabes o que é qualquer coisa?
Pausa: Diz-se dos futebolistas mais tecnicistas que “conseguem fintar até numa cabine telefónica”; a mesma lógica se aplica aos dançarinos de elite quando dentro de um elevador.
Play: “Qualquer coisa é isto!”: comecei a dançar, com os dedos à frente dos olhos, “you never can tell” — Chuck Berry, a canção da tal cena do “Pulp Fiction”, só para inaugurar com o óbvio. Mudei de súbito para Polka, Fandango, três palmas de Flamenco, Vira do Minho, uma rapsódia de Músicas do Mundo que termina comigo agachado a bailar Kalinka, tentando por tudo não dar um pontapé na rapariga. Volto a ritmos mais modernos numa sequência que mistura vários hits musicais. Vou dançando e cantando (introduzindo sempre que necessário alguns reparos nas letras, não fosse a miúda woke ou algo do género): “dale a tu cuerpo alegria Macarena / é o bicho é o bicho, vou-te devorar (não de forma literal e sempre com o devido consentimento), crocodilo eu sou (apenas figurativamente e sem querer insultar os répteis em particular e os animais em geral)” e termino a parte dos ritmos latinos tirando a camisola para deslumbrar com Shakira “Le-ro-lo-le-lo-le, Le-ro-lo-le-lo-le” — é aqui a única altura que a moça me interrompe para perguntar “o que é que isso quer dizer?”. Respondo que não sei, mas isso não interessa porque vem aí o segmento a que me lembrei de chamar “América”: MC Hammer, “can’t touch this” —é mais fácil dizer que fazer porque estamos a cerca de 10 centímetros um do outro, mas isto é só para profissionais. “Ó MEU DEUS, VEM AÍ O REI DA POP!” — grito; “Keep on, with the force, don’t stop, Don’t stop ‘til you get enough”, assim inicio a trilogia Michael Jackson onde junto o célebre Moonwalk com a menos conhecida “dança do Robot que acaricia a criança”. A ponte neste medley é um bloco instrumental onde pratico alguns movimentos conhecidos como “repolho/mexe a sopa”, “running man” (a minha especialidade) e um outro que inventei nos idos anos 90 na Rockline, em Alcântara, o “sem braços” que, agora que penso nisso, deveria chamar-se “membros superiores dormentes”.
Seguem-se três segundos de samba, dois compassos de kizomba, toma lá kuduro, salsa, valsa, sem calça; evitei o breakdance por óbvia falta de espaço. Volto aos clássicos de Hollywood, “You’re the one that I want, ooh ooh ooh”, “i’m singing in the rain” e um remake da esquizofrénica cena final do Footloose.
Já transpiro abundantemente quando se inicia a fase Girl Power, com Chiquitita, dos Abba (homenagem ao Carnaval de Alcobaça), passando por Single Ladies e Like a virgin e termina com o meu esforçado twerk ao som da música preferida da Xerox do escritório: “’tou ficando atoladinha” (na versão de Tati Quebra Barraco, aqui está alguém que sabe adjetivar).
— Qualquer coisa, hein? — disse-lhe, ofegante — Queres ver mais?
A sua resposta conteve apenas duas palavras: “pode” e “ser”.
— “Pode ser?” — imitei — Pode ser? Ou quer ou não quer! Que raio de resposta é essa?
O bing da chegada do elevador ao rés do chão coincidiu com o início do toque do despertador do meu telemóvel. Saí da cama, pela primeira vez na minha vida, dan-çan-do.
Diz quem viu que nessa manhã: quando Leonardo Cruz acordou dos seus sonhos intranquilos, viu-se na sua cama metamorfoseado num cansado dançarino que era, sem dúvida alguma, qualquer coisa.
E é na morte de um poeta que se principia a ver que o mundo é eterno qualquer coisa
Herberto Helder – Vida e Obra de Um Poeta | Os Passos em Volta
que imbecil qualquer coisa aquela guerra numa África miraculosa e ardente que era qualquer coisa onde apetecia nascer como o girassol, o arroz, o algodão e as crianças surdem num ímpeto de géiser, fumegante e triunfal que era qualquer coisa.”
Os Cus de Judas – António Lobo Antunes
“A casa que os Maias vieram habitar em Lisboa, no outono de 1875, era conhecida na vizinhança (da Rua de S. Francisco de Paula, e em todo o bairro das Janelas Verdes), pela Casa do Ramalhete, ou simplesmente o Ramalhete. Apesar deste fresco nome de vivenda campestre, o Ramalhete era realmente qualquer coisa, sombrio casarão de paredes severas, com um renque de estreitas varandas de ferro no primeiro andar, e por cima uma tímida fila de janelinhas abrigadas à beira do telhado, tinha o aspeto tristonho de residência eclesiástica que competia a uma edificação do reinado da senhora D. Maria I: com uma sineta e com uma cruz no topo, assemelhar se ia a um colégio de Jesuítas.”
Os Maias – Eça de Queirós
Gregor teve um choque ao ouvir a sua própria voz responder-lhe, inequivocamente a sua voz, é certo, mas com um horrível e persistente guincho que era qualquer coisachilreante como fundo sonoro, que apenas conservava a forma distinta das palavras no primeiro momento, após o que subia de tom, ecoando em torno delas, até destruir-lhes o sentido, de tal modo que não podia ter-se a certeza de tê-las ouvido corretamente.
A Metamorfose – Franz Kafka
O seu era um desses raros sorrisos que têm o eterno dom de infundir confiança, um sorriso como só encontramos quatro ou cinco vezes na vida que são qualquer coisa.
O Grande Gatsby – F. Scott Fitzgerald
Amor é qualquer coisa fogo que arde sem se ver,é ferida que dói, e não se sente;é um contentamento descontente,é dor que desatina sem doer.
Luís de Camões