Quantos dias vale “Um Dia de Cão?”: um filme e conversa com Pedro Santo (Bruno Aleixo)

por David Calão,    22 Janeiro, 2019
Quantos dias vale “Um Dia de Cão?”: um filme e conversa com Pedro Santo (Bruno Aleixo)
“Dog Day Afternoon” (1975)
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No documentário de Manuel Mozos sobre João Benárd da Costa – a todos os níveis, o grande pai da cinefilia portuguesa – é citado o verso de Sophia de Mello Breyner que o intitula: «Outros amarão as coisas que eu amei». É nestes termos que o GrETUA (Grupo Experimental de Teatro da Universidade de Aveiro) e o NAE-ESSUA, em parceria, desenham o seu novo ciclo de cinema: Cine Qua Non.

O conceito é simples: um convidado é desafiado a escolher um filme e, após a visualização, a partilhar com os espectadores a sua relação com ele, de forma a motivar uma conversa aberta a todos. O ponto de vista será sempre, sobretudo, pessoal. A motivação é cinéfila no sentido etimológico do termo: de pessoas que amam o cinema. Não é necessário, portanto, dominar a complexa gramática dos críticos, mas sim ter vontade de partilhar, de forma mais ou menos crua, as emoções que o filme desperta, a relação emocional e subjectiva que estabelecemos com ele.

“Dog Day Afternoon” (1975)

Na edição do próximo sábado, dia 26 de Janeiro, com inicio marcado para as 16 horas, será Pedro Santo, guionista, co-criador de Bruno Aleixo e voz inconfundível do sempre aflito Busto, o anfitrião da sessão Cine Qua Non, e apresentará o filme Dog Day Afternoon (Um Dia de Cão, 1975), de Sidney Lumet. Pedro Santo escolhe um filme daquela que considera ser a melhor década do cinema: a de 70; que ajudou a moldar a imagem que tem de Nova Iorque – onde pretende nunca ir, para não beliscar essa imagem – e que define como uma espécie de À Espera de Godot dos filmes de assaltos a bancos.

Dog Day Afternoon retrata os acontecimentos do dia 22 de Agosto de 1972, descritos no artigo da LIFE Magazine The Boys in the Bank, em que John Wojtowicz e Salvatore Naturale entraram numa sucursal do Chase Manhattan Bank em Brooklyn, dispostos a assalta-lo, momento a partir do qual uma série de imprevistos, e o próprio amadorismo dos assaltantes, os colocam numa situação desesperada sobre a qual não têm controlo. Dirigido por Sidney Lumet (realizador de 12 Angry Men, The Anderson Tapes ou The Network), com um argumento oscarizado de Frank Pierson (argumentista de Cool Hand Luke, The Anderson Tapes e também de Mad Men) e com Al Pacino e John Cazale na pele de Sonny e Sal (John e Salvatore), o filme é um dos mais icónicos representantes da sua década: crú, sujo e realista.

“Dog Day Afternoon” (1975)

Dog Day Afternoon assume mesmo este realismo como objectivo primordial. Sidney Lumet pretendeu retratar da forma mais fiel possível os acontecimentos daquela tarde, ainda que para isso tenha precisado de ficcionar algumas coisas. Foi isto que levou, aliás, a que tenha permitido aos seus actores improvisar, fazendo Pierson reescrever o guião várias vezes atrás das palavras dos intérpretes, algo inédito no método de Lumet, onde nunca antes se havia visto tanto Cassavetes. Pretendia-se com isto extrair dos actores emoções e uma linguagem autênticas. E o filme consegue, de facto, essa autenticidade e essa crueza.

A partir daqui, alertamos para a existência de possíveis spoilers. Caso sejas sensível a isso, podes passar os próximos três parágrafos à frente.

O filme compreende, nos seus 125 minutos de duração, temas que dariam, cada um deles, para um bom artigo. O mais evidente é a abordagem à identidade de género: o motivo de Sonny neste assalto é financiar a operação de mudança de sexo (M to F) do seu companheiro, Leon. A sensibilidade com que a interacção entre estes personagens ocorre – algo que, ainda em 2019, tantas vezes cai em caricatura – é assinalável e é, aliás, objecto do momento mais tocante em todo o filme.

Filmagens de “Dog Day Afternoon” (1975)

Mas este tema insere-se num ainda mais abrangente, e que Sidney Lumet acaba por abordar novamente em The Network, de 1976, que é o do fenómeno mediático. Se é verdade que o filme é tenso desde o momento em que Stevie abandona o assalto, logo no início – «I’m not gonna make it, Sonny» -, esta tensão escala enormemente a partir do momento em que os assaltantes se vêem retratados nas notícias da televisão, oscilando entre um estatuto de celebridade e rato de laboratório, transformando as suas acções em actos performativos, para serem vistos – o que é, várias vezes, criador momentos de um humor absolutamente sublime, que anda aqui sempre de mão dada com a angústia.

Quando Sonny grita Attica! Attica! – evocando o massacre de 1972 na prisão com este nome – sob o olhar do público, é aplaudido, numa cena que surgiu da pura improvisação. Sonny encarna esta revolta para com a hipocrisia do poder pelo homem comum – e daí a necessidade de o filme se sentir autêntico. O público está com ele, contra a autoridade e contra a figura do Banco. Mas Sonny e Sal tornam-se também presas do poder do intermediário, o televisor, que o cozinha e serve como entretenimento – «we’re entertainment, right?». Como em outras obras de Lumet, existe um ethos anti-sistema mas sobretudo um reconhecimento da sua força e da sua perversidade.

Dog Day Afternoon, na sua tradução para português – Um Dia de Cão – perde o duplo sentido do título original: traduttore, traditore, já se sabe. A expressão Dog Day designa os dias quentes de Agosto. E é isso que este filme é: quente, escaldante, fervilhante. Todo ele é suor, tensão, humor nervoso e drama. E é perfeito por isso.

Este sábado, às 16:00 horas, poderás assistir a Dog Day Afternoon no GrETUA e ficar para uma conversa com o Pedro Santo, onde és convidado também a participar.

Os bilhetes custam 1,5€ para estudantes e 2,5€ para não estudantes, e podes reservar por aqui.

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