Que aconteceu à música portuguesa?
Era mais uma diatribe de redes sociais, daquelas que nascem por surpresa, perplexidade ou desencanto de quem as provoca, e vêm abraçadas a frustração. “Que aconteceu à música portuguesa?”, interrogava-se de isqueiro na mão. Não era bem uma pergunta, era mais uma fogueira pronta a arder e queimar todos os que ousem acalmar as chamas com razões.
Sempre que alguma figura causa espanto e incompreensão, há um reacendimento. Hoje Pedro Mafama, ontem Conan Osiris, anteontem Buraka Som Sistema, na semana passada Sam The Kid. Tal como nos anos 80, os Pop Dell’Arte deixavam Rui Veloso estupefacto no júri do Rock Rendez-Vous. Nem a sala albergue da comunidade musical dos anos 80 gerava unanimidade entre os seus militantes. Provocava discórdia, controvérsia e confronto. Ainda bem. “Nós somos aqueles contra quem os nossos pais nos avisaram”.
Que aconteceu à música portuguesa? Mudou. Está mais ampla, plural e identitária. Espalhou-se por géneros, disseminou-se em formas de expressão, propagou-se pelo país. Socialmente, projecta outros bairros. Geograficamente, outras latitudes. Ganhou quota de mercado em streaming, rádios e festivais. Se a música popular passou por um processo profundo de reformulação, desde as ferramentas criativas, até aos hábitos de consumo, como haveria Portugal de passar ao largo?
Saudades do país que chega sempre atrasado ao comboio? Já basta a ferrovia. Ao contrário do que pensa quem rega com gasolina o solo, a questão nasce de um complexo de inferioridade e não de um desejo de superação ou transcendência. De um sintoma crónico de impotência perante o exterior, felizmente esbatido.
Quem hoje cresce, já não sofre deste estigma. De T-Rex a Profjam, de Plutónio aos Wet Bed Gang, de Slow J a Dino D’Santiago, de Bispo a Ivandro, d’A Garota Não a Ana Moura, de Benjamim a B Fachada, de Branko a Dino D’Santiago, ou de David Bruno a Pedro Mafama o que não falta nesta praia são salva-vidas. Todos diferentes mas com algo a uni-los: identidade definida por um chão comum.
Portugal é um grão de areia no mundo, mas a dimensão criativa não se mede pela dimensão do mercado. Não há razão para continuar a projectar no exterior aspirações impossíveis de concretizar. Foi o pensamento inverso que levou alguns dos que hoje são referências a vencer o medo e derrubar barreiras para que outros não tenham de superar os mesmos obstáculos.
Talvez o estado mais adiantado da maturidade seja o da naturalidade. Não ser assunto, sequer, mas nem sempre foi assim. O estigma do “é português? não gosto” pairou durante décadas e tem raízes seculares na história de Portugal. É verdade que alguns dos grandes fenómenos de vendas na era dourada da indústria foram locais (de Rui Veloso, aos Delfins, Pedro Abrunhosa, Silence 4, Da Weasel ou mais recentemente Ana Moura) mas era excepção e não regra.
Que aconteceu à música portuguesa? Deixou de ter espaço para os Portishead de Alcobaça, para réplicas de Radiohead e segundas-mão dos Arctic Monkeys. A música que hoje se faz por cá é um espelho do país: das ruas, avenidas, bairros e cidades. Dos cafés e das escolas. Dos baixos salários e dos preços certos. Dos transportes públicos e dos Teslas. Da heteronormatividade, da comunidade LGBT e da geração Z.
A língua não é uma obrigação mas é, mais do que uma opção estética, uma ferramenta determinante de identidade, auto-explicativa de muito do que provocou a questão original. É muito mais gratificante viver no país de Slow J, d’A Garota Não ou dos Dead Combo do que no tempo em que as bandas se expressavam em inglês abaixo de Cambridge só porque “em Londres há mais oportunidades”.
A exportação em circuitos pop é uma miragem mas a internacionalização através da identidade é uma janela entreaberta. No acto de extração do país, a música portuguesa conquistou uma oportunidade histórica de se relacionar com o seu povo — a redescoberta de tradiçōes rítmicas, líricas e orais, o interesse por outras latitudes além das litorais, e a afirmação de nomes fora dos grandes centros só contribuem para as fronteiras musicais se alargarem. Que não deve servir para alimentar nacionalismos bacocos e proteccionismos escorregadios.
Um último refrão. Que aconteceu à música portuguesa? Ganhou mundo. Fez-se país.
Este texto foi originalmente publicado em Mesa de Mistura, tendo sido aqui publicado com a devida autorização.