Que futuro para o glifosato?

por José Malta,    15 Julho, 2019
Que futuro para o glifosato?
Fotografia de no one cares / Unsplash

No fim deste texto existem onze referências que sustentam este artigo. As referências estão numeradas, ao longo do texto, junto das ideias chave.

A polémica em relação aos efeitos tóxicos e cancerígenos do glifosato, o herbicida mais vendido em todo o mundo, tem sido tema geral na comunidade científica e na nossa sociedade. Comercializado e produzido em alta escala pela Monsanto (companhia norte-americana que fora detida pela Bayer em 2016) desde há largos anos, o glifosato conseguiu impulsionar a produção do sector agrícola dada a sua potencial acção enquanto herbicida. A produção agrícola sofreu um aumento significativo a nível global graças à acção deste produto que visava ser algo revolucionário. Porém, actualmente têm havido suspeitas das suas potencialidades nocivas, nomeadamente dos seus efeitos tóxicos e cancerígenos em seres humanos, gerando uma preocupação geral em torno do assunto. No meio dos testes científicos e resultados que não conseguem convencer totalmente a comunidade geral existem também os interesses da própria Bayer que, para além de ter de pagar indemnizações brutais às supostas vítimas expostas a este produto, continua a admitir inequivocamente que o glifosato é totalmente seguro e que não existem perigos quanto à sua utilização. No meio de tantas lacunas, informação pouco clara, jogos de interesses, aguardando-se ainda por dados mais concisos, surge uma questão cuja resposta ainda não fora obtida: Que futuro para o glifosato?

Historicamente o glifosato só começou a ganhar impacto na sua principal aplicação algum tempo depois da sua descoberta. A síntese da N-(fosfometil)glcina fora feita com sucesso já nos anos 50 do século XX pelo químico suíço Henry Martin, trabalho esse que nunca fora publicado. No entanto, as suas propriedades como herbicida, nomeadamente o modo como poderia inibir uma enzima, a EPSPS, responsável pela síntese de aminoácidos e que, por conseguinte, consegue promover o crescimento das chamadas “ervas daninhas”foram descobertas pelo químico John E. Franz da Monsanto no início da década de 70. O próprio conseguiu sintetizar este composto quando tentava obter uma série derivados do ácido aminometilfosfónico. Rapidamente, a empresa norte-americana percebeu que o glifosato poderia ser algo revolucionário na produção agrícola e em 1974 comercializa-o com o nome de RoundUp, um nome bem mais apelativo do que a definição corrente do produto ou da sua nomenclatura IUPAC. Também desde essa altura, outros herbicidas cuja composição é à base de glifosato, os chamados glyphosate-based herbicides(GBH), começaram também a ser postos no mercado, e o seu crescimento veio a acompanhar as vendas massivas do RoundUp. Hoje o glifosato é o herbicida mais vendido do mundo contando com um consumo anual que ronda os 700 milhares de toneladas a nível mundial e uma produção que ultrapassa actualmente o valor de um milhão de toneladas, para além de existirem no mercado cerca de 750 produtos que tenham este composto como base. De acordo com o site alemão Statista, prevê-se que o valor de mercado do glifosato ultrapasse os oito mil milhões de dólares a nível mundial ainda este ano. É e continua a ser um produto que para muitos é essencial a produção agrícola em a alta escala. Porém, e tendo em conta os acontecimentos que dão conta das propriedades nocivas deste produto, hoje são mais os contras do que os prós na utilização do glifosato.

O glifosato entrou no mercado numa altura em que a população mundial crescia intensivamente após uma explosão demográfica que ocorrera depois da segunda grande guerra. A produção global tinha sentido os seus efeitos e eram cada vez mais os recursos necessários para a subsistência da humanidade, o que implicaria também um aumento significativo na produção de alimentos. A ciência e a tecnologia procuravam responder a estas necessidades, da melhor forma possível. O uso de sulfato de cobre, enxofre e outros herbicidas menos eficazes eram meios de combate razoáveis, mas demasiado arcaicos para um mundo que precisaria cada vez mais de recursos. A inclusão de um produto que pudesse ser extremamente eficaz seria perfeito para qualquer tipo de sector, neste caso no da produção agrícola. Foram vários os produtores que se renderam ao glifosato dadas a suas propriedades eficazes enquanto herbicida, havendo assim uma procura intensa pelo mesmo. O glifosato facilitou a vida na produção em grande massa de produtos agrícolas e rapidamente chegou ao topo dos herbicidas mais vendidos na década de 90, tendo havido uma média de crescimento do consumo anual de 44% entre 1990 e 20052.

Ao longo dos anos sua síntese foi também modificada com novos processos mais eficazes e até mais verdes até aos dias de hoje. Industrialmente, o glifosato pode ser produzido directamente a partir da glicina ou do ácido fosfórico mas também pode ser obtida reagindo directamente dimetilfosfito com um formaldeído3. A produção que recorre ao uso da dietanolamina, por exemplo, um solvente mais amigo do ambiente, foi uma das apostas na sua síntese nos últimos anos, evitando os perigos da toxicidade do seu processo4. Na década de 80 a toxicidade do glifosato fora avaliada, nomeadamente com testes das doses letais em seres vivos. De acordo com a FAO (Food and Agriculture Organization of the United Nations) a dose letal que atinge 50% de uma população (LD50) é de cerca de 5g/kg para pequenos mamíferos com base em testes de laboratório em ratos (entenda-se que este valor representa a quantidade de substância por massa de um individuo). A sua exposição diária em humanos, que cause a inalação ou ingestão da substância em si, não deve ultrapassar os 0.3mg/Kg com base dados baseados em testes in vitro, o que faz com que este seja um produto potencialmente tóxico. Os mais recentes testes resultados apontam para a citoxicidade em células humanas de populações que estejam altamente expostas ao glifosato5. As propriedades tóxicas que sempre foram evidentes (como em qualquer herbicida num computo geral), não fizeram com que o glifosato fosse um produto considerado extremamente nocivo. A história das possíveis propriedades nocivas do glifosato vai muito para além destes dados que nem de longe nem de perto exploram as verdadeiras propriedades deste herbicida.

A Monsanto continua a dizer que o glifosato não provoca qualquer tipo de mazelas em seres humanos e que o seu manuseamento é seguro sempre que tomadas as suas devidas precauções. Diz ainda que o glifosato não polui águas ou efluentes havendo uma grande afinidade com os solos, ficando acumulado nos terrenos, não havendo qualquer risco de poluir recursos aquíferos. Contudo existem estudos que conseguiram detectar glifosato em águas, alimentos e até mesmo em urina de seres humanos, especialmente em crianças6. Já foi provado também que existe uma enorme tendência em aumentar a toxicidade de determinados produtos que sejam tratados sujeito a tratamento que recorra ao glifosato, em testes  o algodão ou o arroz tratado com este produto7. A sua toxicidade possui níveis mais altos do que aquilo que o suposto, estudo após estudo, e as suspeitas das suas potencialidades cancerígenas em humanos é algo que tem vindo cada vez mais a ser debatido. Em março de 2015, a Agência Internacional para a Pesquisa sobre o Cancro (IARC) da Organização Mundial da Saúde, classificou o glifosato como “provavelmente cancerígeno em humanos” com base em estudos epidemiológicos, estudos em animais em laboratório e estudos in vitro8,9. Tal classificação, como o nome indica, não signifique que seja cancerígeno mas sim suspeitas de o ser. A União Europeia, ao contrário da IARC, não classificou com tal denominação utilizando outros critérios reservando as suas duvidas quanto aos efeitos do glifosato. Entretanto novos casos em torno desta problemática surgiram e deram bastante que falar e, ao que parece, continuará a escorrer tinta nos próximos anos.

O caso mais conhecido ocorreu em 2016 quando foi diagnosticado um linfoma a Dewayne Johnson, jardineiro norte-americano que utilizou de forma intensa glifosato entre 2012 e 2015. O tribunal condenou a Monsanto, neste caso a Bayer, a pagar cerca de 250 milhões de dólares ao jardineiro, sendo esta uma “bomba” que caiu não só na própria Bayer mas também no sector agrícola e científico. Todos os anos têm saído em revistas científicas estudos sobre os efeitos do glifosato em seres humanos, enquanto que a Bayer continua a afirmar que o glifosato não tem tais propriedades. São várias as batalhas em tribunal que a companhia alemã tem enfrentado à custa do glifosato, desde que adquiriu a Monsanto. O mais recente artigo, lançado este ano, é um estudo que afirma que o glifosato aumenta em 41% o risco global do linfoma não-Hodgkin, um tipo de cancro desenvolvido nos glóbulos brancos, em indivíduos expostos à substância10, algo que consegue mais uma vez advertir para o uso de glifosato. Este foi um caso de estudo que conseguiu dar razão a Edwin Hardeman que processou a Monsanto pela causa do seu linfoma (do tipo não-Hodgkin), na qual a Bayer foi condenada em Março deste ano a pagar um indemnização de cerca de 70 milhões de euros. Ano após ano, novos casos surgem das potencialidades cancerígenas e de pessoas a quem lhe são diagnosticadas cancro e que estiveram expostas ao glifosato.

A partir do momento em que existem suspeitas das potencialidades cancerígenas de um produto este começa de imediato a ser menos procurado, tal como o glifosato tende a ser ultimamente. As alternativas existem, mas, claro está, não serão tão eficazes como o produto em si. A dependência ao glifosato é uma realidade e nem todos os sectores parecem estar preparados para isso. A chamada agricultura biológica, uma alternativa que é simpática só pelo nome, apenas consegue funcionar a escalas muito reduzidas. No que toca à produção massiva o glifosato continua a ser aparentemente a melhor alternativa e a rotação de culturas nos terrenos é uma opção que não agrada a todos visto que os grandes produtores possuem terrenos para uma produção em massa de uma determinada cultura. Os movimentos de proibição do glifosato intensificam-se, são cada vez mais os países que procuram a sua eliminação na actividade. Em Portugal existem concelhos que procuram evitar o uso do produto dadas as suas suspeitas o quanto antes. Países como a França pretendem eliminar o uso do glifosato até 2021. Com as notícias dos efeitos nocivos do glifosato as acções da Bayer têm sofrido quedas significativas na bolsa, e a companhia tem perdido a sua credibilidade perante vários sectores.

O futuro do glifosato é ainda incerto, havendo ainda a procura massiva de alternativas. Contudo, à medida que o tempo avança, as possibilidades do glifosato se tornarem herbicida altamente fiável caem por terra. Ainda é cedo para dizer se o glifosato na agricultura terá o mesmo desfecho do amianto na construção civil, fibra que fora utilizada em diversas construções dadas as suas propriedades termoquímicas que fizeram com que este fosse um material utilizado em revestimentos. Hoje o amianto é totalmente proibido de ser utilizado, estando comprovado de maneira inequívoca que a sua exposição causa cancro em humanos. À volta da história do glifosato, as incertezas e os jogos de interesses não ajudam o seu desfecho, tornando neste num assunto onde as questões ainda permanecem sem respostas claras11. Resta-nos então esperar pelos próximos episódios de uma série que começa a ter demasiadas temporadas e cujo desfecho ainda é imprevisível. Os dados estão lançados. O debate também. Até se obter uma resposta inequívoca sobre a segurança do glifosato, e apesar das campanhas que pretendem abolir a sua utilização, não será por aí que este deixará de ser utilizado de um dia para o outro. Resta-nos apenas esperar pelo veredicto final que, apesar de tardar, esperemos que seja benéfico para todos nós enquanto legião viva do nosso planeta, o que não envolve só os seres humanos.

Referências:

  1. Duke, S. O. & Powles, S. B. Glyphosate : a once-in-a-century herbicide. Pest Manag. Sci. 325, 319–325 (2008).
  2. Székács, A. & Darvas, B. Re-registration Challenges of Glyphosate in the European Union. Front. Environ. Sci. 6, 78 (2018).
  3. Zhou, J., Li, J., An, R., Yuan, H. & Yu, F. Study on a New Synthesis Approach of Glyphosate. J. Agric. Food Chem. 60, 6279–6285 (2012).
  4. Abia, R. A model batch scale process for the production of Glyphosate with the scale of operation of up to 3000 tonnes per year. (University of Bergen, Norway Evaluated, 2016).
  5. Luo, L. et al.In vitro cytotoxicity assessment of roundup ( glyphosate ) in L-02 hepatocytes. J. Environ. Sci. Heal. Part B, 10, 1–8 (2017).
  6. Gillezeau, C. et al.The evidence of human exposure to glyphosate : a review. Environ. Heal. 18, 2 (2019).
  7. Kniss, A. R. Long-term trends in the intensity and relative toxicity of herbicide use. Nat. Commun.8, 14865 (2017).
  8. Tarazona, J. V et al.Glyphosate toxicity and carcinogenicity : a review of the scientific basis of the European Union assessment and its differences with IARC. Arch. Toxicol. 91, 2723–2743 (2017).
  9. Mink, P. J., Mandel, J. S., Sceurman, B. K. & Lundin, J. I. Epidemiologic studies of glyphosate and cancer : A review. Regul. Toxicol. Pharmacol. 63, 440–452 (2012).
  10. Zhang, L., Rana, I., Shaffer, R. M., Taioli, E. & Sheppard, L. Mutation Research-Reviews in Mutation Research Exposure to glyphosate-based herbicides and risk for non-Hodgkin lymphoma : A meta-analysis and supporting evidence. Mutat. Res. Mutat. Res. 781, 186–206 (2019).
  11. Torretta, V., Katsoyiannis, I. A., Viotti, P. & Rada, E. C. Critical Review of the Effects of Glyphosate Exposure to the Environment and Humans through the Food Supply Chain. Sustainability 10, 950 (2018).

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