Quem foi Calouste Gulbenkian?
Calouste Gulbenkian é mais conhecido por criar uma das fundações mais ilustres do panorama social e cultural em Portugal, responsável por zelar pela coleção artística deste empresário, arménio de nascença — apesar de ter nascido numa cidade, atualmente, turca — e naturalizado inglês. Foi neste país, porém, que assentou durante o final da sua vida e, em Lisboa, promoveu uma instituição com fins caritativos, nomeadamente nos campos da ciência, da cultura e da educação. Dessa fundação, nasceu o seu museu, assim como uma orquestra, um instituto de ciência, uma comissão e até um conjunto de galardões, para distinguir vultos e obras de destaque nessas mesmas áreas. Porém, mais do que este legado, está a sua vida e o seu trabalho, incluindo a reunião de um conjunto de peças artísticas imortalizadas nesta Fundação.
Calouste Sarkis Gulbenkian nasceu a 23 de março de 1869, na cidade de Üskudar, falecendo, com 86 anos, na cidade de Lisboa, a 20 de julho de 1955. Era o novo membro de uma autêntica dinastia de hábeis negociantes, com ligações estreitas a industriais e a banqueiros daquela região, que tanto peso tinham na exploração petrolífera daquele Médio Oriente. Era um papel de consultadoria aquele que assumiam, mais do que, propriamente, investirem da sua carteira, embora o seu pai fosse um importante importador de petróleo da Rússia para o Império Otomano, dado que era detentor de vários terrenos em que explorava essa matéria-prima. Foram essas pisadas que Calouste seguiu, nomeadamente no Iraque e na Síria (então Mesopotâmia), onde desenvolveu um inquérito quanto à construção da rede ferroviária de Bagdade, entrevistando os seus trabalhadores. A família a mover-se-ia para França, onde Calouste, com 15 anos, viria a estudar, antes de ter seguido para Londres, no seu King’s College, onde estudou engenharia petrolífera e ciências aplicadas até 1887. Após concluir o curso, e, subsequentemente, ter-se tornado cidadão inglês, em 1902, tornou-se no pupilo do magnata petrolífero russo Alexander Mantashev, que havia conhecido em Cairo em 1896, e que lhe apresentou a sua profunda rede de conhecimentos no ramo dessa indústria. Até este conhecimento, já tinha estado em Baku, a estudar a indústria petrolífera russa, sobre a qual redigiu um artigo sobre o seu estado da arte.
De todo este know-how que foi adquirindo, colocou-o em prática ao agilizar negócios de nomeada no setor petrolífero, tendo começado por avalizar a compra de terrenos por parte do sultão otomano para o início de uma exploração petrolífera por parte deste Estado. Isto apesar do revés de 1896 (no qual iria conhecer Mantashev), em que seria forçado, ao lado da sua família, a sair do então Império Otomano – de raízes turcas, mas que controlava grande parte do sudeste europeu e da região que corresponde, hoje, a esse já referido Médio Oriente, tendo em conta os genocídios crescentes da população armeniana, numa fase já de declínio desse Império. Passou, assim, a representar o já mencionado Mantashev em Londres, assim como associados destes nesta indústria. Em Londres, casou-se com uma compatriota sua, Nevarte Essayan (morreria três anos antes de Calouste), e com ela viveu na cidade, numa residência em pleno Hyde Park. Com ela, teria dois filhos, sendo eles Nubar, que se tornaria seu associado nos negócios, e Rita. Do trabalho que fez, destaca-se uma célebre parceria que, rompendo com a concorrência interna feroz, que mais penalizava as empresas envolvidas que as beneficiava, conseguir colocá-las em sinergia e numa dinâmica lucrativa. Eram essas empresas a Shell, inglesa, a Trading Company Ltd. e a Royal Dutch, tendo intermediado a sua fusão para a designação Royal Dutch Shell. Continuou ao lado desta companhia, apoiando-a em futuras explorações na América Central e na do Sul.
Outro importante negócio em que esteve envolvido foi no célebre acordo da Linha Vermelha, assinado em 1928. Este ratificava a colaboração entre ingleses, franceses e holandeses na exploração das reservas de petróleo no território que correspondia ao já extinto Império Otomano, que havia ficado fragmentado entre as tutelas francesa e britânica. Deixou de se chamar, a essa cooperação, a Turkish Petroleum Company, e passou a denominar-se de Iraq Petroleum Company, regulando os preços e as quantidades de petróleo extraídas por cada parte envolvida, para além de concederem uma percentagem da produção total à empresa de Calouste, a Participations and Explorations Inc., fixada nos 5%, percentagem que, em tantos negócios, foi recolhendo (apesar de ter a oportunidade de ficar com toda a exploração para si). Foi assim que se tornou conhecido no “senhor cinco por centro”, uma fama que o ajudou a superar os conflitos bélicos enquanto vivia em Paris, num palácio na Avenue d’Iéna, e a ser apontado como consultor comercial do Império Persa, antecessor do Irão.
Antes deste, já o era para a Turquia, sendo um consultor económico e financeiro nas suas embaixadas de Londres e de Paris e um colaborador importante no Banco Nacional da Turquia. Aliás, tinha estado no desenho da Turkish Petroleum Company, onde, de igual modo, foram estabelecidos os direitos de exploração petrolífera, embora, aqui, incluíssem os alemães. Aqui, no entanto, recolheu uma percentagem de 15%, tendo em conta as suas funções de criador e dinamizador desta sinergia. Apesar da I Guerra Mundial ter fragilizado a presença alemã, Calouste asseguraria a sua permanência na companhia, dando ao franceses a parte correspondente aos empreendimentos germânicos.
Neste percurso que já vinha realizando, não se acanhou na sua atividade filantrópica, não deixando de apoiar os refugiados armenianos que fugiam dos massacres genocidas perpetrados pelos turcos, já na década de 1910. Para além de criar fundos (doou 5% dos seus ganhos aos seus compatriotas, assim como se assegurou de que 5% dos trabalhadores da exploração petrolífera no Iraque tinham essa nacionalidade), reforçou a verba que as Nações Unidas (isto já na década de 1940) disponibilizou para o apoio a esses mesmos refugiados. Porém, nem todos os seus esforços foram bem conseguidos, dada a dificuldade que teve em aceitarem as suas propostas, tanto que chegaria a ser acusado de espião por parte dos soviéticos. Não obstante, deixaria, em Londres, uma igreja armeniana (dedicada ao Santo Sarkis, um mártir e general armeniano) construída com os seus fundos (é onde está sepultado), assim como uma biblioteca no patriarcado armeniano em plena cidade de Jerusalém, para além de presidir à Armenian General Benevolent Union entre 1930 e 1932. Foram esforços que procuraram apoiar essas comunidades de refugiados e que perdurariam já após a sua morte, com a criação da sua Fundação, alicerçando os seus fins humanitários.
Por, entretanto, se ter fixado numa cidade que, na Segunda Guerra Mundial, ficaria associada ao nazismo (Vichy), viu os seus ativos serem arrestados e a sua percentagem da produção petrolífera a não lhe ser paga (seriam-lhe devolvidos com uma compensação financeira a si associada). Foi desta forma que Portugal chegou à sua vida, dado que a própria Pérsia entrava na Guerra no lado dos Aliados e forçava Gulbenkian a assumir uma posição. Ele que já havia sentido contrariedades, nomeadamente com o seu filho, envolvendo negócios com uma companhia petrolífera no Canadá. Portugal só chegaria à sua vida por força, precisamente, do filho, que achava a posição atlântica favorável em relação à outra opção, a Suíça, tendo maiores facilidades de uma eventual emigração para os Estados Unidos.
Mal chegou a Portugal, no entanto, em dezembro de 1942, seria preso, embora fosse, rapidamente, libertado, após intermediação do embaixador egípcio. Afinal de contas, gozava de uma distinta reputação empresarial e de imunidade diplomática, tendo em conta o trabalho desenvolvido para o Estado Pérsico; premissas essas que o faziam ambicionar por um regresso em grande a França ou a Inglaterra. Antes, havia assegurado uma companhia de exploração no Panamá, o que levou a renomear a sua empresa para Partex Oil and Gas Corporation, agora uma subsidiária daquela que seria a sua Fundação. Primava pelo recato e pelas reservas no seu quotidiano, manifestando-se com mais fervor na intimidade e na confiança da sua família. Para além disso, trazia uma importante fortuna, que não investiu em imóveis, dado que residiu, durante os restantes treze anos da sua vida, numa suite do lisboeta Hotel Aviz (apesar de dispor de cinco nas suas instalações).
Era uma fortuna que era avultada, dado que não era só fruto do seu trabalho, mas também uma herança dos seus antepassados. Investia, antes, em obras de arte e em peças de elevado valor artístico (chegou a colecionar mais de seis mil, entre elas muitas do Hermitage, da Rússia, com a venda efetuada por parte do Estado Soviético de parte do seu espólio), que adquiria e emprestava a museus, como a National Gallery, em Londres; assim como em artistas que considerava capazes, tais como o francês René Lalique, um esmerado vidreiro e joalheiro. Como missão, já nos finais da sua vida, tinha a de poder construir uma fundação. Inicialmente, os planos apontavam para que ela fosse criada em solo inglês. No entanto, acabariam por se fixar, em testamento, em Lisboa, num país que, apesar de ter negócios um pouco por todo o mundo, nunca chegou a operar. Os moldes desta idealização de uma fundação seriam repensados à luz, claro está, do Estado Novo, que, num ambiente opressivo e restritivo, impunha restrições inequívocas para a promoção de iniciativas privadas.
A visão cosmopolita de Gulbenkian causava, assim, prurido aos ideais nacionalistas do regime salazarista, pelo que o estabelecimento dessa instituição seria um processo que acarretaria algumas metamorfoses na sua afirmação. Não obstante, Calouste foi claro e objetivo naquilo que pretendia para este projeto: com ramificações internacionais, devia de ser um órgão com fins caritativos, artísticos, educacionais e científicos, embora assumisse os Estados como autênticos players, à imagem das grandes petrolíferas. Procurava, assim, evitar a sua presença no seio da administração da Fundação, tomando em conta a ideia de Radcliffe de dividir a administração entre membros ingleses e portugueses. Não obstante as dificuldades da sua institucionalização, tendo em conta, de igual modo, os responsáveis pela sua administração após a sua morte, acabaria por se tornar numa fundação com plenos direitos dessa denominação, sendo isenta de tributação ao Estado salvo se a maioria dos membros do conselho de administração não fossem de nacionalidade portuguesa. Porém, mantinha-se preocupado, em especial com a tentação do Estado português se apoderar dos meios da Fundação para os seus próprios fins.
Assim, a Fundação seria, formalmente, criada a 18 de julho de 1956, um ano depois da morte de Calouste. Como seu primeiro responsável, a instituição teria José de Azeredo Perdigão, assessor jurídico em Portugal do empresário (chegou a assumir a presidência de várias das companhias petrolíferas da tutela do arménio), depois de ver a abdicação do também advogado e homem de maior confiança do armeniano, Cyril Radcliffe, que havia acompanhado Calouste nos seus negócios desde a década de 1930, tendo em conta a normativa que restringia o conselho de administração a menos estrangeiros e das suas crescentes funções no governo inglês; para além de outras nuances que beneficiavam mais os portugueses do que a visão internacionalista que Gulbenkian defendia. A própria intromissão por parte do Estado Novo, visando aproveitar a imensa riqueza legada por Gulbenkian à sua fundação para os fins de reforçar os meios e os fins do regime, pautou aqueles que seriam os primeiros passos de uma instituição de interesse público. Seria, assim, presidente vitalício, acabando por o deixar de ser em 1993, com a sua morte. Até lá, procurou, ao lado de Kevork Essayan, enteado de Calouste, negociar com o Estado francês a importação da coleção de arte do industrial, assim como assegurar os ativos que ficaram em Paris, nomeadamente o palácio onde residiu.
Para a importação desse conjunto de bens, foi necessário abdicar da herdade de Les Enclos, na Normandia, pertencente à família de Gulbenkian. O Museu seria, assim, aberto em 1969, com o recheio disponibilizado para todo o público, após ficar guardado num palácio em Oeiras até então. O seu edifício, posicionado no Parque de Santa Gertrudes, foi desenhado pelos arquitetos Alberto Pessoa, Pedro Cid e Ruy de Athouguia, e, atualmente, apresenta um espólio que, para além de inúmeras peças da Antiguidade Clássica e outras pertencentes a países islâmicos e às várias civilizações chinesas e japonesas, engloba pinturas e esculturas ocidentais de artistas de nomeada, como Peter Paul Rubens, Édouard Manet, Claude Monet, William Turner, Edgar Degas, Rembrandt e Pierre-Auguste Renoir (na pintura) e Auguste Rodin, Jean-Antoine Houdon e Antonio Canova (na escultura). É, assim, uma autêntica viagem no tempo, desde as remotas civilizações antigas até ao século XX, sem desprimorar qualquer século.
Com a revolução de Abril, e procurando zelar pela independência da instituição, o cariz internacional da Fundação foi evocado para evitar a sua nacionalização, sobrevivendo àquilo que foi o surgimento de um conselho de trabalhadores, que apelava pela sua dissociação das causas do regime. Os receios de Radcliffe, ainda assim, confirmar-se-iam, dado que a Fundação se tornou mais orientada para o país que para o mundo, embora pese o folgado contributo financeiro que foi concedendo (e ainda concede) às iniciativas concernentes aos fins visados pelo empresário. Isso verifica-se na quantidade de apoios prestados a instituições de ensino, a universidades (e respetivas bolsas de estudo a investigadores), a artistas e até a orfanatos, para além de uma dinâmica criação de iniciativas culturais na forma de eventos e de certames. Para além disso, promoveu aquelas que seriam as pioneiras bibliotecas móveis, para além de garantir fundos para dar apoio às comunidades armenianas e a outras do Médio Oriente. Atualmente, dispõe, de igual modo, de um Instituto de Ciência (direcionada para a pesquisa e investigação nos campos da biomedicina e da biologia), de um Coro, de uma companhia de ballet e de uma Orquestra, que assevera o caráter providencial que tem para a atividade social, artística e cultural em Portugal. De igual modo, permanece, subjacente à instituição, uma veia investidora, herança do seu precetor, continuando a encaminhar fundos para o ramo da exploração petrolífera, e essa carteira de valores corresponde, aproximadamente, a um quarto de todo o seu ativo.
Calouste Gulbenkian foi, assim, muito mais do que um industrial que se dedicou a prolongar o legado dos seus familiares (uma estimativa da sua riqueza aponta para o meio milhar de milhões de dólares). Foi, também, um grande filantropo, assegurando a sua imortalidade com a criação de uma Fundação, cujos fins se dedicavam à cultura, à arte, à ciência e, na sua base, à sociedade. Fê-lo após recusar ser apontado como “Sir” pela monarquia inglesa e pela Ordem do Império Britânico e após dedicar muitos dos seus fundos ao apoio das comunidades marginalizadas e flageladas pelos otomanos e, seguidamente, pelos turcos. Com uma educação primorosa e com uma carreira de negócios refinada, deixou, em testamento, a vontade de ver erigido um projeto com um vigor internacional, capaz de promover o passado e o presente, com sentido de futuro. Não obstante, de certa forma, a sua imagem e os seus ideais terem sido absorvidos pelo estado português (que lhe atribuiu a Grã-Cruz da Ordem de Cristo, em 1950) e pelos seus interesses, a atualidade reflete mais aquilo que Calouste pretendia: essa visão cosmopolita, de convivência de diferentes proveniências e de várias expressões, com um sentido progressista e evolutivo. Ainda hoje perdura, desta forma, em todas as iniciativas e visitas que a Fundação acolhe, este ensejo vivo e humanitário.