Quem nos ensina a sofrer?
Além do facto de sermos diferentes, todos temos mais algo em comum: o sofrimento. Viver dói. Não importa o contexto em que nascemos, mais tarde ou mais cedo, a dor acaba por nos apanhar. Seja ela física ou psicológica, pouco importa. Em algum momento, vamos magoar-nos e sentir emoções negativas. Neste aspecto, não temos grande voto na matéria. No entanto, a forma como escolhemos depurar essa experiência é o que pode fazer toda a diferença.
Remontando aos meus tempos de adolescente, recordo-me que éramos munidos de variadíssimos conselhos para evitar que nos magoássemos, em vez de nos ser explicado como lidar com esse sofrimento. Aprendíamos a esquivar-nos das chatices — ou pelo menos a tentar. Ninguém nos ensinou o que fazer depois da tristeza se instalar. Na melhor das hipóteses ouvíamos um pouco convincente “não te preocupes, o tempo cura tudo”.
A areia deslizava na ampulheta e, enquanto a ferida não cicatrizava, não sabíamos o que fazer com aquela mágoa. Ela ia connosco para todo o lado, até mesmo para o sono. Mas, e porque a nossa biologia assim o manda, instintivamente encontrávamos uma fuga. Era como se os jogos, o tabaco ou álcool fossem a mais fácil das soluções. Caíamos na ilusão de que era possível resolver o que sentíamos sem ter que nos olhar de frente. Com o tempo, acabamos por perceber que não é possível colher os frutos do que não cultivámos.
Dentro da vasta obra do mestre zen Thich Nhat Hanh, é possível encontrar um ensaio sobre a arte de sofrer. Como em qualquer outra técnica, temos de praticá-la e predispor-nos a encarar a dor como qualquer outra certeza da vida. E esse é precisamente o primeiro ponto do seu ensinamento: aceitar a tristeza e compreender a sua origem. Assim que procuramos acalmar-nos, ficamos mais capacitados para olhar para a ferida como algo passageiro e não como a definição de quem realmente somos.
Logo de seguida, recomenda-nos que evitemos ser atingidos uma segunda vez. A primeira foi o acontecimento que despoletou a dor, a seguinte será o medo de não a conseguirmos superar. Ou porque imaginamos que a situação é bem pior do que na verdade é, ou porque simplesmente não aceitamos que aquilo nos está a acontecer, algo normalmente verbalizado com um “porquê eu?”. Pode também entrar aqui a frustração de uma expectativa que ficou por cumprir ou o arrependimento por não termos agido a tempo. Pouco importa. O que realmente interessa é observar a emoção por aquilo que ela é, sem exagerar ou amplificar com outras preocupações.
Thich Nhat Hanh alerta-nos também para o sofrimento que não é verdadeiramente nosso. Por vezes, damos por nós preocupados e angustiados sem saber bem porquê. Como a sensação é tão real, acabamos por adotar aquela dor como sendo nossa. É de extrema importância revisitar as origens desse desconforto. De onde vem ele afinal? Foi passado pelos nossos pais? Pela sociedade? Pelos media? Nem todos os problemas são realmente nossos, muitos foram herdados de forma inconsciente. Assim que fazemos essa distinção, ficamos com mais energia para focar-nos nas questões que dependem de nós.
Como sabem, nada nem ninguém sobrevive sem alimento. Isto tanto se aplica ao amor e à amizade como ao sofrimento e à tristeza. Tudo o que permanece nas nossas vidas é porque, além de lhe termos aberto a porta, ainda o estamos a alimentar. Não somos apenas aquilo que comemos, somos também aquilo que escolhemos sentir. Ao reajustarmos os nossos hábitos, comportamento e discurso, estamos a deixar a dor a passar fome. Sem fonte de alimentação, acaba por ir morrendo aos poucos. Mais tarde, irá tornar-se no adubo que fertiliza o nosso terreno interior, onde há espaço para crescer a paz e a felicidade.
Da mesma forma que não há descanso sem antes existir fadiga, também o sofrimento pode ter algo para nos oferecer. Apesar de evitarmos a dor a todo o custo, a verdade é que ela pode ser uma tremenda fonte de sabedoria, humildade e compaixão. Só sente o prazer de se reerguer, quem antes sentiu o chão de perto.
Tudo faz parte de um equilíbrio cósmico invisível aos olhos, mas perfeitamente enxergável pela nossa alma. Não é simples, muito menos imediato, mas é possível. Esta é a nossa sala de aula. Sem paredes nem quadro, apenas matéria. Onde aprender a sofrer é tão importante como saber sorrir.