Quem paga o seguro de saúde de 3,6 milhões de portugueses?
A ignorância geral, atrevida ou não, assim como a excessiva adoração bacoca dos “especialistas” num determinado microtema, resulta numa fraca qualidade do comentariado português. É notória a leviandade com que se comenta a maioria dos casos, sem uma lógica interactuante ou visão global. No caso concreto da saúde, todos os dias é empolada uma narrativa de que o SNS está imbuído num caos profundo e que as pessoas para serem bem tratadas devem recorrer a um serviço privado, de preferência mediante um seguro de saúde. Só que, como quase sempre, a realidade revela-se muito mais complexa.
A narrativa passada suporta-se no número significativo de portugueses que têm um seguro de saúde. Vários comentadores papagueiam que a percentagem de portugueses que recorre a seguros, subsistemas e planos complementares de saúde ultrapassa os 50%. Geralmente, os números são passados de forma superficial, como mera arma de arremesso e com o propósito único de validar um preconceito ideológico: o público é mau e o privado é bom. Como este é um assunto demasiado sério para ser comentado de forma tão pouco sensata, sobretudo porque com a saúde não se brinca, importa reorientar o debate.
Segundo o Observatório para a Saúde, cerca de ⅓ dos portugueses possui um seguro de saúde. Falamos sensivelmente de 3.6 milhões de pessoas, número significativo para a realidade do país. Contudo, a mesma fonte evidencia que mais de 54% dos cidadãos não o paga, sobretudo porque se encontra incluído num pacote de benefícios empresariais. Ao que parece, a narrativa construída todos os dias fica sem a sua principal base de sustentação: a maioria dos portugueses não opta por um seguro de saúde e, entre os que o têm, a maioria não o paga.
Isto acontece por várias razões. Primeiro, porque mesmo com todos os seus problemas graves (e é impossível ignorá-los), o SNS vai cumprindo o seu papel fundamental de prestador universal de serviços, correspondendo às necessidades da maioria. Segundo, porque a anuidade dos seguros é impeditiva para a maioria dos portugueses. De acordo com o mesmo Observatório para a Saúde, mais de metade dos cidadãos que paga o próprio seguro de saúde faz parte dum agregado com rendimentos líquidos mensais superiores a 2250€, valor muito superior à mediana dos salários, mesmo considerando dois contribuintes. Terceiro, porque uma parte considerável dos portugueses não reconhece valor suficiente num seguro de saúde que justifique o seu pagamento. Bem sei que esta última afirmação choca quem está habituado a empolar os casos problemáticos do SNS, mas não chocará os cidadãos que apresentam queixas dos prestadores de cuidados de saúde privados — afinal, perfazem mais de metade do total das queixas. Além disso, os casos graves são tratados ou desviados para o sistema público, circunscrevendo a utilidade dos seguros a cuidados bem mais restritos.
Mas olhemos para quem tem seguro de saúde e não o paga — são, afinal, a maioria. Este é, provavelmente, o “benefício” mais oferecido no mundo empresarial e admito que seja o mais procurado, mas é preciso ser-se claro na sua lógica de existência: o seguro de saúde surge, sobretudo, como forma de contornar o sistema de progressividade remuneratório. Ou seja, ao ser dado fora de um sistema de taxação, prejudica quem não o tem pela menor captação de recursos. Existe também uma lógica atomizada subjacente ao seguro de saúde (e a vários outros benefícios). Outrora, eram comuns sistemas complementares de pensões, cantinas sociais internas, etc. Hoje, os benefícios são individuais, isto é, “indexados” a um só trabalhador. Parece uma minudência, mas prende-se com a necessidade de fragmentação no local de trabalho, condição essencial para a manutenção do neoliberalismo. Além disso, o seguro de saúde e os restantes benefícios não são dados por mera caridade — as empresas servem-se deles para dedução em sede de IRC, contornando, novamente, a progressividade do sistema fiscal.
E quanto aos que contratam seguros de saúde por iniciativa própria? Creio ser impossível dissociar as subscrições do marketing abusivo directo (spots televisivos e anúncios) e indirecto (narrativa de caos no SNS) feito todos os dias. Aliás, a proliferação de propostas em programas típicos da manhã não é inocente — é aproveitamento mercantil do facto deste entretenimento ser visto, sobretudo, por uma população mais vulnerável, menos informada e que procura mais cuidados de saúde. Fosse este produto mais regulado em termos comunicacionais e não tivesse o empolamento diário habitual, a realidade seria, seguramente, outra.
A manutenção das estruturas de poder na sociedade já não acontece por repressão ou por violência física: ocorre por um moldar dos indivíduos e um guiar da percepção pública com vista à sua aceitação. O empolamento diário de seguros de saúde por comentadores mais ou menos ignorantes é uma forma encapotada de legitimar o serviço privado, ao subentendidamente dizerem que são poucos os que recorrem ao público e que, por isso, não precisamos de investir nele. Não podemos ignorar os graves problemas do SNS que resultam, essencialmente, da ausência de recursos, fracos incentivos e uma gestão demasiado burocrática, morosa e vertical. Talvez sejam demasiados problemas para o que deveria ser um serviço público eficiente, mas engane-se quem acha que é com seguros de saúde que os vamos resolver.