Querem mesmo acabar com a discriminação?

por Pedro Morgado,    7 Setembro, 2021
Querem mesmo acabar com a discriminação?
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Os últimos dias ficaram marcados pelas declarações de Paulo Rangel acerca da sua orientação sexual. Seria extraordinário vivermos numa sociedade em que já ninguém presumisse que todos são heterossexuais até que se partilha outra orientação. Mas a nossa realidade é distinta. A heteronarmatividade e a discriminação implícita e explicíta ainda está demasiado presente na nossa sociedade criando situações de sofrimento com as quais milhares de crianças, jovens e adultos têm que conviver quotidianamente. Procuramos sintetizar de seguida alguns pontos que consideramos fundamentais.

  1. A orientação sexual diz respeito à atração sexual preferencial de cada pessoa. Não é uma opção ou escolha mas sim uma característica individual como a cor dos olhos ou a altura.

  2. As orientações não heterossexuais têm sido historicamente discriminadas, perpetuando-se uma narrativa que prejudica as pessoas com orientações sexuais minoritárias, sujeitando-as a agressões frequentes com consequências negativas para as suas vidas e, em particular, para a sua saúde.

  3. O movimento cívico e político que defende a igualdade de direitos entre todas as pessoas e a não discriminação daqueles que têm orientações sexuais minoritárias tem sofrido a oposição violenta de vários partidos políticos, em particular daqueles que são mais influenciados por grupos conservadores e religiosos.

  4. Ao longo das últimas décadas, vários projetos-lei foram apresentados com vista à eliminação das discriminações absurdas que ainda persistem no acesso ao casamento, no direito das crianças à adopção ou nas limitações injustificadas à doação de sangue, para citar alguns exemplos. Nessas ocasiões vários deputados escolheram opor-se à igualdade nos Direitos Humanos, uma posição que é irracional, incompreensível, desrespeitosa e totalmente censurável à luz dos princípios que regem a nossa vida em sociedade e os nossos valores comuns. Alguns votaram contra em determinado momento e, felizmente, atualizaram o seu voto depois.

  5. Alguns desses deputados eram pessoas heterossexuais que já usufruíam dos privilégios que queriam negar aos seus concidadãos; alguns eram mesmo pessoas heterossexuais eleitas por partidos que defendiam nos seus programas eleitorais esse mesmo reconhecimento; outros eram pessoas homossexuais. Todos eles escolheram estar do lado errado da História e opor-se ao progresso e ao reconhecimento da universalidade dos Direitos Humanos.

  6. Aqui chegados, estamos ainda muito longe da igualdade plena de direitos entre pessoas heterossexuais e pessoas com orientações sexuais minoritárias. A homofobia encontra-se demasiado internalizada e normalizada na nossa sociedade, o que dificulta o processo de aceitação pessoal, familiar e social de milhares de jovens e adultos.

  7. O episódio que levou às declarações de Paulo Rangel é um bom exemplo da perpetuação desse ambiente tóxico e nocivo para as pessoas homossexuais em Portugal. Desde que foi implicado na disputa pela liderança do PSD, Paulo Rangel foi vítima de uma campanha que tentava associar a sua orientação sexual a algo negativo ou prejudicial. Este episódio indecente e as notícias de jornal que o sustentaram são o sintoma de uma sociedade que discrimina, que ataca e que desprotege as minorias.

  8. A revelação pública da orientação sexual de Paulo Rangel é um facto politicamente relevante na medida em que demonstra a uma sociedade predominantemente e, muitas vezes, inconscientemente homofóbica que é possível ter uma carreira sendo homossexual. Ao PSD e à sociedade caberá agora demonstrar se também é possível mantê-la depois de se partilhar uma orientação sexual minoritária num partido de direita.

  9. Ao Paulo Rangel, como político, caberá refletir sobre a importância do seu discurso para uma sociedade que foi educada para ostracizar essa condição. Ao contrário do que afirmou na entrevista, nem a orientação sexual é necessariamente uma matéria do foro privado nem é irrelevante que todas as pessoas possam viver e falar abertamente acerca da sua orientação sexual.

  10. Algumas pessoas escolheram o momento em que Paulo Rangel revelou a sua orientação sexual para denunciar a “hipocrisia” de ter votado contra a igualdade no casamento sendo ele próprio homossexual. Ao fazê-lo, ainda que alguns de forma inadvertida, sujeitaram-no a um duplo julgamento e embarcam na narrativa de uma sociedade que ainda entende que as pessoas devem adotar comportamentos específicos em função da sua orientação sexual.

  11. Ninguém tem ou deve ter obrigações especiais em função da sua orientação sexual. Um deputado heterossexual que votou contra o acesso de outras pessoas a Direitos Humanos de que já dispunha deve ser criticado com a mesma veemência que um deputado homossexual que optou pelo memo voto. Um diretor heterossexual que discrimina os trabalhadores homossexuais deve ser perseguido e condenado com a mesma veêmencia que um diretor homossexual que adopta o mesmo comportamento. A incoerência e a hipocrisia assentam no facto de se votar contra direitos fundamentais e de discriminar as pessoas em função da sua orientação sexual e, nunca, nas características pessoais de quem adopta esses comportamentos.

  12. Algumas pessoas escolheram este momento para dizer que Paulo Rangel, sendo homossexual, deveria ter falado mais cedo ou influenciado de forma mais determinante o seu partido. Muitas dessas pessoas não imaginam o que é ser homossexual, crescer numa escola que utiliza “paneleiro” ou “bicha” como insulto perante a passividade de todos, trabalhar num espaço onde as piadas homofóbicas são toleradas e aplaudidas quotidianamente, ter uma família que não “aceita” nem “compreende” a orientação sexual ou ouvir insultos homofóbicos em todos os jogos da sua equipa de futebol. É para que cada um possa viver à sua maneira que defendemos a igualdade e, por isso, é importante que aceitemos o ritmo a que cada um faz o seu caminho.

  13. O eurodeputado Paulo Rangel, embora forçado pelos episódios lamentáveis que descrevi acima, escolheu abordar publicamente as dificuldades que as pessoas homossexuais experienciam no processo de aceitação pessoal, familiar e social. O que se espera a partir de agora é que atue em conformidade na sua ação política, promovendo a diplomacia e as leis que permitam que todas as pessoas sejam respeitadas independentemente da sua orientação sexual, muito em particular na Polónia e na Hungria onde são desrespeitadas, perseguidas, humilhadas e agredidas por governos do seu próprio espectro político. É que, se Paulo Rangel pôde viver em Bruxelas de uma forma mais livre do que aquela que a sociedade que também ajudou a moldar lhe impunha em Portugal, a verdade é que essa possibilidade não existe para milhares de jovens e adultos que sofrem junto a nós.

O caso político em torno de Paulo Rangel é complexo e tem vários prismas de análise. Rejeito em absoluto a ideia de que a sua orientação sexual o torna mais criticável do que todos os outros políticos que, ao longo da História, se opuseram, em vários momentos, ao reconhecimento de direitos fundamentais em função da orientação sexual, do género ou de qualquer outro atributo pessoal. Penso que essa ideia é, em si mesma, discriminatória e contrária aos princípios do movimento cívico e político que luta pela igualdade entre todos.

As pessoas devem ser questionadas pelas suas ideias e pelas suas escolhas políticas mas nunca pela sua orientação sexual ou pela forma como escolhem vivê-la. Tenho hoje a mesma exigência que tinha ontem com Paulo Rangel, com Rui Rio ou com o Papa Francisco nesta matéria. Tenho hoje a mesma exigência que tinha ontem com todos os que só por simpatia política e partidária com Rangel despertaram para a necessidade de se respeitarem todas as pessoas independentemente da sua orientação sexual. Enquanto, pelas suas narrativas, votos e omissões, forem contrários à igualdade plena de direitos, à promoção de medidas de redução da discriminação, à aceitação plena das pessoas transgénero e ao combate aos governos que perseguem e agridem as pessoas homossexuais na Polónia e na Hungria, jamais poderão ter a confiança daqueles que, como eu, defendem uma sociedade mais saudável, justa e harmoniosa para todos.

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