Quinteto de Anoushka Shankar uniu espíritos e mundos na Casa da Música
Escutar cítara é sempre sinónimo de uma experiência transcendente e reluzente, com especiarias auditivas e sensoriais vindas da Índia e da sua música única. Escutá-la ao vivo seria, certamente, um deleite incomparável. Escutá-la interpretada pela filha de um dos grandes mestres do instrumento, Ravi Shankar, tornar-se-ia, claramente, algo ainda mais elevatório. Foi o que procurámos ao dizer que sim ao repto lançado pela britânico-americana Anoushka Shankar e no concerto marcado para a Casa da Música, no Porto, naquela que será a sua presença única em solo português nesta tournée. No passado, já havia visitado a Fundação Calouste Gulbenkian no ido ano de 2011, assim como o Centro Cultural de Belém em 2008, sendo que, na Invicta, só há 20 anos havia estado.
Mesmo sendo filha de Ravi Shankar e irmã da cantora Norah Jones, Anoushka, nascida em 1981, tem muitos, mas muitos méritos próprios. Para além de somar três décadas de música e quase uma dezena de nomeações para os Grammys, soma uma transversalidade enorme e amplíssima, que faz da cítara um instrumento multidimensional. A esfera da música clássica indiana é, desta feita, evidentemente colocada no pano de fundo, já que as interações com a contemporânea e com a eletrónica são constatáveis a ouvido nu. A lista de colaborações que fez, desde Nils Frahm a Jacob Collier, a Arooj Aftab e à sua irmã Norah Jones, ilustram o caráter eclético e inclusivo da sua música.
É um percurso longo feito por esta artista, que recua ao ano de 1998, aos 17 anos, onde lançou “Anoushka”. A este, seguiu-se “Anourag” (2000, atuando, no ano seguinte, em pleno Carnegie Hall, em Nova Iorque), “Rise” (2005, que marca uma abertura para o jazz e para a chamada world music), “Breathing Under Water” (2007), “Traveller” (2011, com muita afinidade com o flamenco), “Traces of You” (2013), “Home” (2015) e “Land of God” (2016). Nota para estes quatro últimos terem sido lançados pela reputada editora Deutsche Grammophon. No presente ano, o seu “Chapter II: How Dark It Is Before Dawn”, tal como o “Chapter I: Forever, For Now” (lançado no ano anterior), trazem a tal ligação mais expressiva com expressões da música contemporânea e eletrónica.
Para além disso, tem uma veia ativista bastante profunda, fazendo inúmeros concertos de beneficência, nomeadamente para a causa animal (é membro da PETA), para a dos refugiados, para a da fome e do abuso da mulher nos países subdesenvolvidos e para a da guerra. Esta veia permitiu-lhe assumir uma presença de rotina e de referência em eventos de cariz diplomático nos quatro cantos do mundo. De igual modo, nota para a sua presença em várias bandas sonoras de filmes e de séries, como o filme mudo indiano “Shiraz” (1928).
Para este concerto, nota para a constituição do seu quinteto, que a acompanhou nestes dois últimos trabalhos. Assim, com Anoushka na cítara, Tom Farmer no baixo, Arun Ghosh no clarinete, Pirashanna Thevarajah na percussão e um nosso velho conhecido na bateria e que, no ano passado, fomos ver a Serralves: de seu nome Sarathy Korwar. Aquilo que este elenco prenunciava, assim como a sua discografia mais recente, era um ecossistema musical mais ligado a vibrações eletrónicas e ritmicamente dinâmicas do que espaços de meditação e de elevação espiritual. Foi isso mesmo que encontramos, embora nem tanto desde a música inicial, “Offering”, executada somente pela líder do quinteto a solo.
Os “Chapters” referidos acima seriam desdobrados após Anoushka se apresentar e nos referir que iria abri-los à disposição dos espectadores, numa mescla constante que recorria a temas que só posteriormente viriam a público no eventual terceiro capítulo. Enquanto não o podemos escutar quando queremos, tivemos o concerto à disposição para poder usufruir dele e de sentir que, ao vivo, é muito, mas muito mais do que a reprodução num Youtube ou num Spotify da vida. “New Dawn”, “Secret Heart” e “Dancing in Madness” foram fazendo as delícias de quem, modestamente, aplaudiu a primeira faixa, com a reverência que lhe era devida.
Porém, o discurso direto e interligado entre a cítara (e os pedais rítmicos) de Anoushka, o clarinete de Ghosh e a percussão (com o mridangam, a kanjira e o ghatam, todos eles instrumentos típicos) de Thevarajah e do nosso amigo Korwar abandonou o espírito de reverência distante e deificada e chegou a um ambiente caloroso e até fervoroso. Superadas algumas dificuldades técnicas iniciais, a música clássica indiana diluiu-se entre o jazz e a música do mundo (world music) que tanto nos fez sorrir e vibrar na prisão do lugar sentado. Ghosh e Thevarajah foram, talvez, os mais aclamados, mas destacamos a coesão oferecida pelo transversal e omnipresente Farmer no contrabaixo, que estava em todo o lugar a oferecer “jogo” para os outros brilharem.
Exemplo declaradíssimo desses esforços foi a versão trepidante de “Fire Night”, concebida e interpretada inicialmente pelo pai de Anoushka, o lendário Ravi Shankar; tal como “Traces of You” e “Reunion”, que encerraram a exemplar e retumbante prestação do quinteto. A citarista apresentou-nos a banda por duas ocasiões e fez questão de explicar, através do seu brilho no olhar e dos seus sorrisos, a admiração que sentia por todos eles. Para o encore, estava reservada uma interpretação à boa moda das ragas da música clássica indiana. À imagem da abertura, foi um solo de Anoushka e da sua cítara com o tema “Sleeping Flowers”, que anestesiou o inebriado público que, seguramente, assistiu a um dos concertos da sua vida.
Anoushka Shankar trouxe, ao lado da sua trupe de talentos prodigiosos, uma roupagem distinta e destacada da música clássica indiana. Por mais que avistássemos, entre os espectadores, alguns trajados com saris, a ocidentalidade que predominou no público não teve remédio que não render-se à orientalidade e à sumptuosidade instrumental dos envolvidos. Mais sintonia não podia haver entre os cinco — desde Korwar a tocar um mridangam imaginado com as mãos, como o faz no seu projeto pessoal —, onde, claro está, pontificou o espírito bom e alegre de Anoushka, que agradeceu comovidamente a afeição dos espectadores do Porto. Depois desta, lança-se o repto: porque não mais oriente (recorde-se Arooj Aftab e Tigran Hamasyan, ambos em contexto do Misty Fest) na cidade? Se houver público como hoje, rendido e entregue ao que lhe têm para proporcionar, será, com certeza, aposta ganha nos horizontes do nosso mundo.