“Raiashopping” é o memorial de David Bruno às suas origens

por Lucas Brandão,    2 Agosto, 2020
“Raiashopping” é o memorial de David Bruno às suas origens
Capa do disco / Fotografia: Renato Cruz Santos
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Depois de fazer parte dos Conjunto Corona, db, agora David Bruno, vem traçando um percurso distinto, que, a partir da mestria dos seus samples, vai para lá da veia gangster e que chega aos palcos do romântico e de um forte sentido de homenagem da portugalidade. Enquanto que “O Último Tango em Mafamude” (2018) e “Miramar Confidencial” (2019) fazem uma ode à cidade de Vila Nova de Gaia e à sua orla costeira, nomeadamente a zona de Miramar, David Bruno faz deslocar a sua música para a zona raiana, bem no interior, na fronteira, onde o músico tem raízes. É, assim, a partir de Figueira de Castelo Rodrigo e da sua aldeia, Freixeda do Torrão, que nasce o terceiro disco do universo David Bruno: “Raiashopping”. É a ponte entre Gaia, de Gaia Shopping para o EP “Gaia Chopping” e que, na Raia, se firma.

Novamente Marco Duarte, o guitarrista – mais conhecido por Marquito -, e Renato Cruz Santos, o célebre António Bandeiras, juntam-se a esta celebração das memórias e das estórias contadas na primeira pessoa por David Bruno. Abrimos o disco com a introdução de “Raiashopping”, com a menção a um poema de Miguel Torga (“Pátria”) e com algumas imagens bucólicas dos bosques e dos terrenos dessa Raia. Partimos, daqui, para o “Café Central”. Vários momentos, desde o Toni, o Veloso e outros protagonistas do Benfica sentados à mesa, até aos tradicionais cenários de situações que se passam casualmente num café. É aqui que entra a primeira desgarrada de guitarra de Marquito (e que fenomenais que elas são) e é onde David Bruno, vestindo uma camisola do clube local, o Ginásio Clube Figueirense, e começa a sua dissertação sobre esse mítico lugar, o café do seu avô Carlos. As memórias das estórias das bruxarias e dos lobisomens, dos shows de bola entre solteiros e casados e das partidas de sueca chegam ao majestoso refrão “pede e paga no Café Central”, que contam com um precioso autotune no “Café Centraaaaal”.

Soube a definição na minha infância.
Mas o tempo apagou
As linhas no mapa da memória
A mesma palmatória 
Desenhou.
Hoje
Sei apenas gostar
Duma nesga de terra
Debruada de mar.
“Pátria”, poema de Miguel Torga.

Finda a primeira música, vamos diretos para o primeiro de quatro momentos, que vão pautando o vídeo-álbum consoante as estórias do cantor se pronuncia. Aqui, encontramos um momento de convívio de domingo à tarde entre os locais, que se reúnem em amena cavaqueira, para além de uma dança que parece vir das recolhas antropológicas das celebrações das aldeias locais. É um bonito toque, que confirma o epíteto que lhe fora atribuído de “antropólogo digital”. Depois de um chocolateiro a mencionar a sua profissão como algo orgásmico, comparável com a seda de que é feita os seios de uma mulher, Marquito e António Bandeiras juntam-se e, um com os acordes e outro com as moves e com a presença, bombeiam o espírito contrabandista e ousado dos locais. É uma estória de contrabando que, assim, é contada em “Praliné”, que homenageia as “caixas de Praliné, Toblerone, Ferrero Rocher, frutos do mar da Guylian, Fin Carré com avelã”. Os doces que encantavam o pequeno David quando ia ao outro lado da fronteira, ao antigo Carrefour, comprar os regalos que adoçicam esta música.

De Espanha, também nos chegam os momentos de êxtase na discoteca, principalmente na de “Salamanca By Nite”. Um ohouooooooh que nos mostra a categórica foleirada desses dias de dança frenética, a ouvir música dos anos 1980 ou 1990. Bandeiras e David Bruno, vestidos a rigor, mostram-nos como se dança e é uma toada que segue pelo segundo momento, onde se capta uma dança popular de vários locais, em que mostram as melhores moves que a portugalidade não hesita em fazer lembrar. Ainda em Salamanca, o chuléton e os pimentos padrón são presença assegurada num clima de folia que, depois desse segundo momento, abraça o single “Festa da Espuma”. Uma homenagem sentida à discoteca Auritex de Figueira de Castelo Rodrigo, com a presença do trio DB-Marquito (agora com uma camisola do Arsenal de 2004, na época dos Invencíveis)-Bandeiras. A festa da espuma é todo um fenómeno que carateriza esta região e que não esquece as malhas de Hélder, Rei do Kuduro. Aliás, entre muitas outras, eram e são estas que faziam e fazem as delícias de uma pista brindada a sal e azeite, com um condimento que aproveita para promover a economia local, desde o body Lacatoni até à licra da Cofides, duas marcas de roupa desportivas.

Fotografia: Renato Cruz Santos

O momento mais terno de todo o disco é o terceiro momento, onde David Bruno aparece em diferentes fases da sua infância, resultante de fragmentos do arquivo videográfico dos familiares do músico. Isto sem antes um ancião aconselhar um jovem que pretende ser camionista sobre o que deve e não deve fazer para que, no seu futuro, se realize. Este momento mais íntimo e pessoal da infância de David Bruno ressoa na canção “Flan Chino Mandarin”, o nome do célebre pudim que tantas sobremesas nos proporcionou. Não podia faltar, claro está, uma menção aos relógios Casio e aos álbuns dos Dire Straits, elementos indispensáveis para que a viagem no tempo se concretize. António Bandeiras também toca guitarra, apoiando o deslumbre de Marquito neste discurso musical aguerrido e personalizado. Se muitos achavam que nunca cantariam sobre ondas de calor e garrafões vazios para encher na fonte, chegou o momento.

Chegados à reta final do disco, estamos perante o último momento (nº 4), onde se faz a ode às travessuras da fronteira de Vilar Formoso, entre as viagens dos emigrados e os acidentes que daí advêm. “Comem muito e bebem bastante”, diz a jornalista que relata o volume de acidentes nessa passagem. É daí que vem a exortação “Doucement”, uma sentida homenagem ao “Vem Devagar Emigrante”, de Graciano Saga. David Bruno, com uma camisola da Turquia, mistura o português, o espanhol e o francês para, numa só voz, avisar os condutores para virem com calma e atenção com os leves e com os pesados que vêm em contramão e que podem causar ainda mais acidentes. Atenção para com quem vem de Zamora, de Salamanca, de Ciudad Rodrigo e assim sucessivamente. “Écoute bien, viens doucement, faites atención avec le camien, porque eles vêm todos em contramão”. É um tom de reflexão e mais denso aquele com que termina um vídeoálbum tão airoso em tantos momentos.

David Bruno abre-nos, assim, o livro da sua infância e das suas origens, sem deixar de perder a sua distinta identidade e as referências arqueológicas e culturais. O memorial que é “Raiashopping”, embora mais breve, apresenta um compêndio de momentos e de estórias rebuscadas, mas também tão serranas, tão comuns quando nos relembramos das vivências da “nossa aldeia”. É este elo que nos liga e que nos permite que a música de David Bruno nos diga tanto, muito para lá da sofisticação lírica e do rendilhado musical. A simplicidade do ritmo e da letra permitem que o discurso do universo de David Bruno seja transparente, evidente, mas, ao mesmo, capaz de dizer muito do que somos feitos. Depois de dançar o tango em Mafamude e de procurar desmistificar o calote de Adriano Malheiro na costa de Gaia, agora é a Raia que é narrada, de coração para coração, com mel e fel à mistura, num verdadeiro pitéu da música portuguesa.

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