Rebeldes do afecto
Talvez seja só eu, mas não me parece. O que noto, agora que conseguimos ver o nó que nos apertava a garganta, o que noto, amigos é isto: há uma sede, uma fome que anda na rua. E de quê? De nós, dos nossos.
Pairando sobre as tragédias que são reais, sobre os números da lotaria da morte que os noticiários insistem em nos impingir, sobre as regras, recomendações, perguntas, angústias, raivas, contradições, conspirações, tristezas, alegrias, humanidade, desumanidade – pairando sobre tudo isto há a vontade urgente de reunir com quem amamos. E aqui não há máscara que esconda nem possa impedir.
Cada reencontro é uma festa, uma dádiva. A mera possibilidade de que isso aconteça quase que deu sentido à vida. Pronto, desculpem, não resisti. Mas como aqui já perorei, as pequenas coisas cresceram. E se isso é verdade, o que dizer das grandes, como a amizade ou o amor?
Enfim, há esta situação que me parece encantadora. Mas para quem já teve a sorte do prazer do reencontro perceberá o novo problema que estes dias nos trouxeram: qual o protocolo aceitável para saudar quem estimamos? Sim, o cronista é um superficial e já ganhou tempo e palavras a falar das boas maneiras. Mas vá lá, ajudem-me. Sabem do que falo. Ainda hoje tive a experiência que me ofereceu esta crónica: um almoço de quatro amigos íntimos, daqueles que nos conhecem pelo direito e avesso. E ao reencontrarmo-nos finalmente, depois de meses, a preocupação era: tocamos os cotovelos? Dizemos apenas olá? Trocamos sinalética maçónica? A intimidade levou justamente a esta perplexidade ridícula: olhámo-nos e não sabíamos o que fazer com as mãos, com os braços, com as máscaras. Para quem como eu saúda os grandes amigos com uma bela beijoca na bochecha, o caso agrava-se.
Como se isso não fosse bastante outra realidade se começa a impor. Como o acontecimento foi público e num restaurante concorrido, cada comensal transformou-se num denunciante. Os olhares de julgamento silencioso são fáceis de sentir nas costas. O que estão aqueles a fazer? Não sabem que…? Não podem, não devem. Vivem juntos? Em que rua moram? É só tirar uma fotografia para soltar o ódio nas redes sociais e já peço os filetes.
É estranho, amigos, quando os afectos exigem hesitação, sobretudo num país não escandinavo. Pior é quando começam, de alguma forma, a serem vigiados. Sim, eu sei: o eterno dilema entre liberdade e segurança. Por vezes há que ceder uma para que a outra possa existir.
Mas como escreveu um dos meus mestres, “nem escravo nem rebelde”. Por isso, no final do almoço consumámos sem medo e com orgulho o derradeiro acto de rebeldia contemporânea: uma bela beijoca na bochecha ao dizer adeus. Se morrermos, que seja de amizade.