Regresso a Lisboa 

por Paulo Rodrigues Ferreira,    17 Junho, 2022
Regresso a Lisboa 
Fotografia de Oksana Z / Unsplash
PUB

Daqui a poucos dias, estarei em Portugal, depois de mais de cinco anos de ausência. Quando abandonei Lisboa, amargurado com a pouca sorte de ter nascido na ditosa pátria, para parafrasear os conhecidos versos de Jorge de Sena, acreditei que não lá voltaria, que aprenderia o inglês de maneira perfeita, com sotaque tão americano que ninguém saberia de onde eu era. Viraria cidadão do mundo, portador de múltiplos passaportes. Nutriria indiferença pela obsessão nacional com o passado das caravelas e pela glorificação de vedetas minúsculas como chávenas de café. Seria demasiado moderno para a cultura da saudade, para o lacrimoso fado cantado por gente vestida de negro e para a grave face que os portugueses sempre botam, mesmo ao contar anedotas. Esqueceria as capelinhas, os jogos de bastidores e práticas que sugam a alma, sintetizadas pela expressão “uma mão lava a outra” ou “quem não tem vergonha, todo o mundo é seu.” Rasgaria ainda palavras ouvidas na televisão até à exaustão, como “austeridade” e “dívida”, e rir-me-ia quando ouvisse um político dizer que “é preciso apertar o cinto.” 

Se é verdade que parte de mim mudou, que já não me sinto condenado ao destino de arrastar a esquálida carantonha pelo caminho da agrura, ainda me fascino com recordações de passeios a pé, de livro na mão por Alfama e por todas as ruas onde fui moderadamente feliz, como o copo de leite que não passou de morno. Agora que quase me vejo no avião da TAP, pronto para as palmas da aterragem, avivo diálogos na paleolítica barbearia do senhor Antonino, que me esfregava o pescoço com álcool após a tosquia, jantares com amigos em tascas nas quais se petiscava quase de borla e se falava sem as reservas do respeitinho adulto. Vasculho na memória o que vivi em Lisboa, por vezes sem admitir que o que experimentei foi uma pobreza que incluía contentamento, uma frustração que não era perpétua, pois existiam o amanhecer em Santa Apolónia e em Santa Clara, as gargalhadas nocturnas na Rua dos Remédios, as corridas à volta do Panteão com o cão atrelado, os comboios para a praia em Cascais. No fundo, sensações que me levam a acreditar que era bom acordar na casinha com terraço da rua da Verónica e sentir-me livre das responsabilidades de encher linhas no curriculum vitae, de ser tão profissional como outros reputados profissionais, de viver a tal vida adulta que ansiamos viver na adolescência. 

Regresso com a sensação de nunca ter zarpado e, ao mesmo tempo, com a crença de já não pertencer ao sítio onde nasci, de voltar como um turista que precisa de adquirir um guia para saber onde estão os restaurantes e os locais da moda. Sou totalmente português, mas não me sinto dentro da terra. Passaram-se anos, a cidade não é a mesma. As caras que eu via diariamente já não me esperam, a vizinha que passeava a cadela todas as manhãs deve ter falecido, e os sítios que eu frequentava não mais me cativam, porque para além da distância houve a vida, o trabalho, a fúria do dinheiro. Não me contentarei agora com romarias a alfarrabistas e à feira da ladra, não terei a bola de futebol e os amigos em Chelas e na Calçada do Combro rogando para que não falte à jogatana — “é preciso mais um para fazer dez jogadores.” 

Receando confrontar o passado com a realidade que vou encontrar agora, convenço-me de que é só um mês, que num fechar de olhos estou outra vez nas aulas e na perseguição dos “objectivos”. Que as crianças que agora me acompanham, os meus filhos, sangue do meu sangue, precisam de saber de onde eu sou, mesmo que não falem a língua e não compreendam que o pai às vezes acorda melancólico só porque sim, e que dá tudo para encontrar um bacalhau salgado na Carolina do Norte, e que, num dia ou outro de aguaceiro, se lhe parte o coração por saber que já nada é como naqueles dias dos vinte e tais anos em que sofria pelo Benfica e ficava até altas horas da madrugada palrando sobre sonhos e frustrações e autores que ia lendo encostado à parede da tasca “Típica”, auxiliado por copo de cerveja ou de vinho. Nada é como foi e, ainda assim, o que me espera é visualmente parecido ao que vi, permanece imóvel, como o relógio parado do filme A Cidade Branca (1983), de Tanner.  

Gostas do trabalho da Comunidade Cultura e Arte?

Podes apoiar a partir de 1€ por mês.