Regresso à normalidade
Preciso da vossa imaginação, espero que colaborem. Passaram cerca de vinte anos desde a mudança do milénio e nestes últimos vinte anos, parece que não, mas muitas coisas mudaram na nossa cultura, sendo a mais relevante de todas o aprisionamento da palavra normalidade. Já não a usamos da mesma forma, não podemos. Porque agora sabemos do seu poder destrutivo. Sabemos que norma, mais do que tudo se refere a uma regra estabelecida. A norma é a regra, o juízo habitual, o padrão. Ou seja, a norma é a negação da liberdade individual e como gostámos nestas últimas duas décadas de reivindicar a a liberdade individual.
A liberdade o que é? Para os nossos avós, liberdade era poder votar em quem se quisesse e poder falar mal dos mais poderosos à frente deles. Para os nossos pais, liberdade era ter um bom ordenado, um bom carro, uma boa casa. Para nós, a liberdade é o desafio de respeitar as escolhas dos outros, mesmo quando as temos por defeituosas. Para os nossos filhos o que virá a ser a liberdade? Talvez o conceito tenha essa beleza extraordinária hermenêutica de se apresentar como uma pergunta e não como uma resposta.
A libertação do indivíduo, das grilhetas que a sociedade decidiu por ele, tornou-se assim a grande luta ideológica do nosso tempo. Usada para os fins mais diversos, o ser normal ou anormal perdeu a função social e ganhou a função individual. Cada um decide o que é, ou não, normal. Mas isso criou ciclos de tempo que estamos sempre a quebrar. Algo que parece do passado aparece à nossa frente, inesperadamente, porque cada um, à sua maneira, decide o que está certo ou errado. Coisas que pensávamos resolvidas como a crença na ciência, o fim do poder das religiões ou a impossibilidade das revoluções sociais e do estado de guerra total estão à nossa frente hoje, como sempre. Mas há esperança para além desta aparente derrota.
Imaginem, então, que estão sentados nas escadas de um antigo quartel militar, a falar com um jovem actor. Têm de aceitar que são o encenador, director artístico, desta conversa. Uma espécie de mistura entre um pedagogo e um líder político de uma facção minoritária do parlamento. Querem compreender o outro que está à vossa frente, mas também querem que o rapaz perceba que o nosso grupo espera dele algum tipo de militância artística. Assim, sentado, o encenador acende um cigarro e pergunta: Achas que a personagem é “Trans” ou “Drag”? Nem uma coisa nem outra. A Roxana é não binária, vive bem com a utilização do sujeito feminino ou masculino, pode até usá-los aos dois. Tem um corpo masculino, que é o meu, mas sente que isso de ser homem ou mulher é apenas uma norma social que não sente necessidade de cumprir. É assim que a vejo: livre. Mas como achas que a personagem pode estar perante as restantes? Apresenta-se como ele ou ela? Umas vezes de uma maneira, outras vezes de outra maneira.
Convém, só para ajudar, avisar que estávamos a trabalhar sobre um texto em que um exército de libertação cultural invade a nossa cidade e que propõe que todos fossemos libertados pela melhor cultura europeia, que nos deixássemos ajudar e que tudo correria pelo melhor. Cada actor e actriz foram convidados, a partir da narrativa do texto, a desenvolverem a sua própria identidade. Coisa arriscada para um encenador hiper-organizado, mas coisa deliciosa para um pedagogo hiper-optimista. Dos vários desafios, este era o primeiro a resolver: Então o normal é a Roxana ser ele ou ela, não ter uma base definida, ser não binário/binária?
Parece fácil a resposta, não?! Somos o que quisermos ser e se isso fizer sentido dentro de nós, então os outros só têm de aceitar o nosso exterior. Ter um corte de cabelo masculino, mas vestir um vestido, pintar as unhas, usar um colar feminino… O jovem actor falava e eu, de facto, sentia que usar mais alguma vez a palavra normal era, e passava a ser, apenas uma divertida e cómica parvoíce para dizer, quando quisesse discutir com alguém. E como eu gosto de discutir com alguém…