Regresso ao liceu
Cheguei tarde. Quase todos os lugares pareciam ocupados. Conto uma piada tentando quebrar o gelo; ninguém pareceu ouvir. Ri-me de coisas que alguns disseram, a outros apenas manifestei agrado. Repeti algumas delas, ninguém me ligou puto.
Começo a descer sem saber bem onde me dirijo enquanto observo um grupo de pessoas comentando um programa de televisão — uns amam, outros odeiam, todos têm opinião clara. Alguém chora a rir: demasiado histerismo, se querem a minha opinião, já para não dizer que é uma rude forma de concluir um argumento.
Continuo. Encontro uma miúda mascarada a dissertar sobre a China. Desenrola um fio, que suponho ser de lã, enquanto demonstra saber de cor os principais marcos da história do “Império do Meio”. Digo “BOM TRABALHO!” e alguém me pede “calma”. Saio dali meio envergonhado.
Desço mais um pouco.
Há quatro tipos entretidos com uma espécie de jogo de quadrados verdes e pretos.
“Tenta”
(não podem estar a falar comigo)
“Senta”
(mas sou algum cão, ou quê?)
“Lenta?”
(não estou a perceber nada…)
“Porra…MENTA! Acertei!”.
Espreito mais de perto, preciso compreender a razão do entusiasmo. É um jogo de palavras. Cinco letras, menta, certo, essa já sabia. A próxima, só depois da meia noite. Além das vozes, creio ouvir um piar ao longe, constante.
Mais abaixo, outro grupo discute o salário mínimo. Parecem dividir-se em trincheiras. Um rapaz, penso eu, estava lá em cima há pouco a criticar um jogador de futebol. Pedem-me para o seguir. Recuso. Apenas me retenho por uns segundos, é à frente que se desenvolve a ação. Acesa, no mínimo, a discussão que vislumbro sobre um tema supostamente polémico. Pelo que entendo, alguém fez uma piada que outro alguém não gostou. Três ou quatro pessoas lideram a disputa, têm muita gente a apoiá-los. São estes os mais populares. Tento perceber porquê. Pergunto quem são. Alguns já eram conhecidos, até por mim, outros foram dos primeiros a chegar. Numa grande algazarra de respostas uns mostram-se cem por cento contra, outros sem dúvida a favor. É difícil entrar na conversa, talvez por ninguém me conhecer. Mais vale o anonimato do que a exposição que um desgraçado está a ter — a turba, entretanto, virou-se para gozar com ele.
Não percebo a razão.
Já não quero perceber.
Um tipo jovem, sozinho a um canto, começa do nada a relatar uma aula de Gonçalo M. Tavares. De súbito, reúne-se uma grande audiência a acompanhá-lo. Fez amigos em pouco tempo, bravo, sinto uma certa inveja que logo tento descartar. “Pensei que fosses mais maduro”, sussurro, falando comigo mesmo.
Um tipo grita “Benfica!”, e sou logo cativado. Escreve “vamos contudo”. Sorrio. E aceito a dica.
Prossigo e dou com esta mulher que conta uma conversa tida com a filha de 4 anos, mas aparenta usar o diálogo descrito para atacar alguém. Alguém comenta que ela nem sequer tem filhos. Sinto uma estranheza difícil de explicar. O piar que ouvi há pouco torna-se mais nítido. Olho para cima com mais atenção: um pardal azul.
Prestes a desistir, decido participar. Eu também tive aulas com Gonçalo M. Tavares. Armo-me aos cágados, que se lixe:
— Na Grécia Antiga, o Liceu era um gymnasion perto de Atenas. A palavra designa também a escola filosófica fundada por Aristóteles, em 335 a.C. (a escola peripatética), cujos membros se reuniam no local. Peripatético é a palavra grega para ‘ambulante’ ou ‘itinerante’.
Espero um pouco. Confirmo a inexistência de reações. A minha culpa católica diz-me que o mereci — tivesse feito algo sobre um tema menos pedante, mais próximo do que sou, do que conheço. Acabo por descontinuar o raciocínio que comparava o Twitter ao Liceu, e no qual ligaria os dois conceitos. Já tive o meu tempo de liceu, de populares, de bullies e de grupos.
Saio. É tarde.
Trago dali aquele jogo das palavras. Abriu de novo. Cinco letras.
Acerto mesmo na última.
“T E M P O”.