Regresso ao silêncio
Maybe it’s what we don’t say
that saves us.
Enough Music, Dorianne Laux
Permitam que vos inflija uma pequena e raríssima história pessoal para início de conversa. Há cerca de uma década senti que a minha vida estava num lugar escuro e sem saída. Ao princípio atribuí esse sentimento à mítica “crise de meia-idade”. Só que enquanto noutros homens os sintomas manifestam-se no casamento com mulheres muito mais jovens ou na compra de veículos descapotáveis a mim deu-me para tentar ingressar na Ordem da Cartuxa.
Se agora brinco é porque posso. Na altura, sem trabalho nem qualquer perspectiva de futuro próximo e sobretudo com um pronunciado asco ao mundo, pareceu-me a única forma de me salvar. Através de uma amiga-anjo consegui o contacto do Prior do Mosteiro Scala Coeli em Évora e uma permissão de visita e conversa. Para quem não sabe, a Ordem da Cartuxa é uma ordem contemplativa, que em vez de falar de Deus aos homens fala dos homens a Deus, através da oração. Quando cheguei ao mosteiro as minhas certezas estavam inexpugnáveis. Visitei as celas dos monges de branco, onde a única mobília era formada por uma cama, uma mesa de trabalho e estantes com livros. As janelas – que se fechavam quando em recolhimento – rodeavam um claustro belíssimo. Havia um silêncio doce no ar e não existe outra palavra para o descrever: religioso. Fiquei entusiasmado e fui falar com o Prior, o fantástico padre Antão, homem sábio e bonacheirão. Explicou-me com calma que mesmo que quisesse não reunia as condições de idade ou de vida para ingressar em noviciado. E perguntou-me: «Mas o que mais te atrai nesta vida, para além do serviço que prestamos?». Respondi de imediato: «O silêncio». Ao que o padre Antão retorquiu: «Percebo-te bem, mas este silêncio não o irias suportar. O teu silêncio está noutro lado». Tinha razão e só agora o percebi por inteiro.
O silêncio. Por instantes abandonei-o, deixei-me convencer por comodidade e estupidez que se tratava apenas de um modismo literário porque assim alguém insistia. “Ah, outra vez a história do indizível”. E eu, que tantas vezes sofri e proclamei o facto de as palavras na literatura e na vida serem apenas a mediação da alma interrompi a minha crença que é no silêncio que tudo está.
Fiz mal. A vida tem esta mania de nos atirar por vezes para lugares que nos foram queridos mas que abandonámos à pressa. E ali voltei, a uma casa desarrumada mas familiar, as crenças antigas intactas apesar de tudo. Quando assim é há pouco a fazer: ou se arruma ou se abandona. Neste caso, valeu a pena regressar.
Voltei a acreditar nas entrelinhas. Senti-me à vontade nessa constatação de que as palavras são a mais bonita das impossibilidades, que nunca servirão nem chegarão para dizer o que sentimos, por mais à flor da pele que as utilizemos. Se eu escrever ou disser “eu amo” será a mesma coisa do que sentir que eu amo?
Não me parece. As palavras, por serem convenções e sujeitas a regras estão maculadas logo por definição. Exigem trabalho, atenção, análise. E tudo isso fere o que se sente.
Será mau? Não, é o que há e o que há é bom. Toda a literatura parte do desafio dessa superação, dessa suspensão da descrença. Há legionários célebres e ferozes que sempre viram a palavra como um inevitável entulho: Cioran, que proclamou a mais terrível sentença: “Todas as palavras me incomodam”; Beckett com a sua obsessão pela depuração extrema (“Todas as palavras são uma mancha desnecessária no silêncio e no nada”); Rilke, que defendia que a nossa tarefa seria escutar as notícias que nos chegam do silêncio.
Por causa deste reencontro voltei a ler essa belíssima elegia ao silêncio que é Água Viva, de Clarice Lispector. “Minhas desequilibradas palavras são o luxo de meu silêncio”, escreve ela a dada altura. E é nesta paisagem familiar que me comprazo, nesses instantes mudos em que entre os que amamos partilhamos o que não conseguimos dizer, o que mesmo agora me estou a esforçar inutilmente por dizer.
Não por acaso chega-me às mãos uma entrevista do meu amigo e magnífico escritor Rui Cardoso Martins, em que ele afirma que as palavras servem para sobrevivermos. Concordo. Mas o silêncio serve para nos protegermos da vida.
Esta crónica foi publicada originalmente no jornal Hoje Macau, tendo sido aqui reproduzida com a devida autorização.