Rendamo-nos à deslumbrante música oriental de Arooj Aftab
O fenómeno do Oriente que é Arooj Aftab voltou a Portugal. Depois de passar pelo Theatro Circo, em Braga, em maio, fez-se presente em Lisboa, no Teatro Maria Matos, no dia 1 de novembro, e chegou à Casa da Música no dia seguinte, onde fomos escutar e experienciar uma das revelações musicais e artísticas dos últimos anos. Isto porque Aftab, não obstante já ter percorrido o mundo em diversos concertos, permanece como alguém ainda a ser descoberta por grande parte dos melómanos. Afinal de contas, quem é Arooj Aftab?
Arooj Aftab traz uma mescla de discursos e de personalidades: traz a harmonia e a serenidade do jazz clássico, o engenho do minimalismo, rasgos da música eletrónica menos ruidosa e, em especial, aspetos das suas raízes, os mesmos que a tornam tão diferente. Apesar de ter nascido, em 1985, na Arábia Saudita, é paquistanesa e traz muita da poesia sufi(sta) como mote para as suas declamações. A sua qualidade é reconhecida pelo Grammy de Melhor Performance de Música Internacional que arrecadou em 2022 — a primeira mulher do seu país a arrebatar um.
“Mohabbat”, a canção que lhe valeu o prémio e que foi reconhecida pela própria figura de Barack Obama, faz parte do seu mais recente e badalado álbum, Vulture Prince, lançado há um ano. As cordas da harpa céltica da escocesa Maeve Gilchrist, o violino de Darian Donovan Thomas e o contrabaixo de Petros Kamplanis, aliados aos arranjos de Magda Giannikou, desenvolvem o pano de fundo deste prodigioso trabalho musical, que vem conquistando paulatinamente quem a ouve. Atualmente, também conta com o apoio do guitarrista Gyan Riley e do baixista Shahzad Ismaily.
Aftab somente viveria no Paquistão, na encantadora e histórica cidade de Lahore, a partir dos 10 anos de idade, depois de crescer na Arábia Saudita com os seus pais. De forma autodidata, começou a tocar guitarra e a descobrir as grandes intérpretes de jazz (com destaque para Billie Holiday), mas também nomes como Jeff Buckley, a sua compatriota Abida Parveen e até os indianos Begum Akhtar — cantora —, o tablista Zakir Hussain e o flautista Hariprasad Chaurasia. Foi divulgando a sua música e as suas interpretações de músicas locais através da Internet. Com isto, conseguiu criar uma falange de fãs significativa, mesmo depois de ter emigrado, com 19 anos, para os Estados Unidos.
Lá, estudou produção musical em Berklee e, depois de Boston, seguiu para trabalhar em Nova Iorque. Entre várias colaborações com produções culturais independentes, Aftab gravou em estúdio por três ocasiões: Bird Under Water (2014), Siren Islands (2018, menos devocional e mais elétrico) e, agora, Vulture Prince (2021). Nas poesias que recita (e nas que cria) em urdu, a paquistanesa não esquece as figuras, entre outras, de Rumi ou de Mirza Ghalib, utilizando o estilo poético oriental ghazal, que invoca sempre histórias de grande profundidade emocional, com reflexões existenciais profundas e apaixonadas.
No Porto, depois de um concerto alegadamente caloroso em Lisboa, chegou com uma chávena de chá na mão, alegando estar de ressaca. Consigo, trouxe somente o guitarrista Gyan Riley (que pena a harpa de Maeve Gilchrist ter ficado por casa), filho do genial músico minimalista (e orientalista) Terry Riley, que, de forma clara e inequívoca, dividiu o protagonismo do palco com Arooj. Trouxe os acordes certos e até improvisações muitíssimo felizes, que polvilharam o som-base das canções e a hipnotizante voz da paquistanesa, arrancando imensos aplausos de um público que não encheu totalmente o recinto, mas que se mostrou rendido ao duo. Um duo que Arooj fez questão de assinalar que era o que lhe fazia mais sentido para percorrer o mundo.
Arooj agradeceu o calor do público e até expressou o desejo de ficar por cá a viver, apaixonada pela gastronomia (“o frango!”) e pelo fado. Com um sentido de humor bem refinado, falou-nos das suas histórias de amor mal concretizadas, que inspiraram muitos dos seus temas, e distribuiu rosas pelo público, mesmo tendo em conta o risco que corria de lesionar alguém com os seus espinhos e de o seu manager ter de acionar o seguro de responsabilidade civil.
Destacou ainda a sua interpretação de “Udhero Na” com a artista indiana Anoushka Shankar, em Londres, e lamentou não a ter consigo no Porto. Porém, não deixou de abrir o livro de Vulture Prince e de fechar a atuação com uma maravilhosa entoação de “Mohabbat”, a única canção que, em estúdio, conta com a colaboração de Gyan Riley. Aqui, no entanto, adicionou um complemento interessante: uma espécie de ukulele eletrónico, que trouxe sons supersónicos e experimentalistas, muito à imagem daqueles que o seu pai tem produzido na sua carreira.
Não obstante Arooj Aftab nos convidar a usufruir do concerto como se de uma banda de rock se tratassem, a verdade é que o ambiente intimista e o trabalho de luzes que o reforçou não nos permitiram usufruir do concerto de outra forma. Foi, indubitavelmente, a confirmação de que esta cantora, apesar da diminuta discografia em nome próprio que tem à disposição, consegue colocar a seus pés — pela boa disposição mas, em especial, pela voz etérea e sufista — uma plateia habituada a outras sonoridades, pouco ligadas ao que se faz a Oriente.
Porém, em palco, o destaque tem de ser dividido: Gyan Riley compreendeu na perfeição o perfume e o fragor que Arooj Aftab traz na sua música — escrita, sonorizada e dita — e, por vezes, liderou o palco, com Arooj a complementá-lo. Para o futuro, fica a certeza de que queremos mais: descobrir mais, ouvir mais, render-nos mais. Abrir-nos ao diferente e deixar-nos conquistar. Embora façamos um esforço por compreender as suas letras, — com recurso ao tradutor, se necessário (e bem necessário, porque há tanta e tão boa poesia em urdu e afins) — basta um mero “om”, nas cordas ou na voz, para que nos tenha na mão.