Repetição e recontextualização: Carl Stone ao vivo no Understage do Teatro Rivoli, no Porto
Carl Stone é um músico americano, com uma respeitável carreira no âmbito da música electrónica e experimental. O primeiro registo discográfico editado terá sido em 1979, numa colectânea de sound poetry, e após uma espécie de hiato discográfico, tem editado material novo: esta nova vaga iniciou com Baroo e Himalaya, editados no mesmo ano de 2019. As capas destes dois discos são, em certa medida, similares: há em ambas um desenho, construído a partir de colagens, sobre fundo de tom pastel; é evidente que os vários elementos provêm de fontes distintas, mas existe, apesar disso, uma unidade final. Olha-se o resultado, e eis a imagem de uma obra una.
Ora, são ocorrências daqueles felizes casos em que a capa de um álbum se ajusta ao som que representa, pois da mesma forma se manifesta a música de Stone: um mosaico esquizóide que agrega impulsos de uma pluralidade de origens — vozes de um sítio, percussão de outra, melodias várias a entrar e a sair — e que se aglutina numa explosão sensorial e sinestética, como um caleidoscópio sonoro. É um exercício tremendamente formal, e no qual é frequente a evidência das partes que o compõem, e apesar disso sobrevém o impulso dançável, e um forte sentido de diversão, de maravilha com a descoberta do som: a súbida ordem entrevista entre o caos da cacofonia.
Há sites de referência que o encaixam em três géneros: plunderphonics (do inglês to plunder: algo como roubar, ou apropriar), minimalismo, e tape music. E está tudo certo. Na passada quinta-feira, apresentou-se no Understage do Teatro Rivoli, no Porto — curadoria da Matéria Prima —, munido apenas de um iPad, onde centrou grande parte da sua atenção (manejando-o de tal forma que acreditámos no potencial do acelerómetro do dispositivo como elemento de composição), além de um outro computador de apoio. Seguiram-se várias experiências, compondo elementos a partir de técnicas que já se entrevêm no seu trabalho há muitos anos. Quando em 2016 foi lançado Electronic Music from the Seventies and Eighties, que reúne trabalhos antigos, com muitos inéditos, percebemos o motivo da repetição, da sobreposição, do gradual desfasamento que transforma qualquer som bem definido numa outra onda espasmódica, indefinida, prolongada tanto no tempo como no seu corpo. No Bandcamp, alguém escreve sobre uma faixa do disco: “Dong Il Jang tries 15 ideas and 3 of them work“; é uma ideia que resume muita da atitude inerente a estas experiências.
Recentemente, numa entrevista à The Wire (ed. 464), Carl Stone fala sobre o início da sua carreira – profissional, não ainda artística – e menciona uma passagem na biblioteca sonora da Cal Arts, uma universidade privada de artes na Califórnia, onde estudava sob a tutela de Morton Subotnick, conhecido, entre outras coisas, por ser o autor de Silver Apples on the Moon (1967), o primeiro disco de música electrónica comissionado por uma editora discográfica. Stone trabalhava como uma espécie de arquivista, criando cópias de cassetes, e quando copiava vários discos em simultâneo, manifestava-se uma confusão aural de sobreposição e recontexualização de obras: “O que se revelou pela exposição a todas estas músicas, e as colisões que aconteciam enquanto fazia estas cópias de arquivo, inspiraram-me de certa forma e agudizaram um interesse no uso da apropriação, reformulação e contextualização da música para criar resultados interessantes, que desafiassem o ouvinte de formas diferentes”.
Há em toda a sua obra um fascínio formal com a técnica, mesmo que sejam, em geral, processos muito simples e fáceis de compreender; diametralmente oposto, é inefável o motivo do fascínio que temos pela sua música. Se pode um minúsculo sample de uma música de Schubert entreter-nos, nas suas quase infinitas variantes, durante quinze (!) minutos, haverá algo a dizer da forma como consumimos cultura e arte — ao invés de procurar algo novo, poder-se-ia descobrir mais profundamente, através da repetição ou recontexualização? E quanto à sensação de surpresa, talvez até de partilharmos uma pequena piada privada, quando uma textura ininteligível se revela, progressivamente, na imediatamente reconhecível voz de Freddy Mercury em I Want To Ride My Bicycle? Carl Stone está certamente ciente deste potencial humorístico: a dada altura da sua carreira, passou a nomear as suas músicas em função de restaurantes onde fez refeições; no seu Instagram estão, à data da publicação, fieis registos das suas refeições em terra lusa (além da actuação no Porto, passou também pela Galeria Zé dos Bois no dia anterior).
A tour europeia vem a propósito de uma celebração dos seus 70 anos — também aí há uma pequena brincadeira, com a leveza de alguém que não leva, nem a si nem à sua obra, demasiado a sério. As edições de arquivo continuam este ano, e será lançado Electronic Music from 1972-2022 pela Unseen Worlds. Para os curiosos, há muita carreira para descobrir. Na eventualidade de se fartarem, podem sempre colocar dois ou três trabalhos em simultâneo; quem sabe, até gravar…