Reportagem. Aveiro, a capital de que cultura? (parte II)
(Lê aqui a parte I desta reportagem)
Se já foi visitar Aveiro, é bem provável que lhe tenham recomendado ir visitar o Mercado Negro. Um espaço com dois andares e quase uma dezena de salas, este assumia-se como uma associação cultural, um bar, sala de espetáculos e local que abriga estúdios de tatuagem, lojas de discos e livrarias. Este era um dos principais espaços de convívio de Aveiro.
Situado num edifício bicentenário, à frente da ria aveirense e nas costas da Praça do Peixe — o coração da “noite” da cidade — o Mercado Negro, que este ano deveria celebrar os 18 anos de existência, era um lugar especial onde se podia ver um concerto de punk, beber um copo tranquilo, assistir a sessões de poesia ou ter aulas de tango ou de xadrez.
“A nossa missão era enquadrar aquele edifício na cultura da noite e na vida quotidiana das pessoas”, diz-nos António da Silva Santos, que servia como gerente deste espaço desde 2016.
“Todas as salas tinham uma função. Tínhamos lojas de artesanato, de vinis, livrarias, uma com uma mesa de bilhar, duas salas de convívio, onde se faziam palestras, apresentações de livros e outras coisas do género”, enumera.
Agregado a isto, existia ainda um bar onde toda a gente poderia sentir-se integrada. “Queríamos receber pessoas dos oito aos oitenta. Que filhos viessem conviver com os pais e se sentissem todos bem”, afirma o gerente.
Nos últimos anos, especialmente no pós-pandemia, este tornou-se também no local de referência para os estudantes de Erasmus, adotando-o como um ponto de encontro. “Eles sentiam-se integrados e ofereciam-nos muito, porque partilhavam a sua cultura, promovendo exposições e trocas de ideias”, diz António.
O Mercado Negro servia ainda como um importante espaço para jovens bandas portuguesas, uma vez que oferecia um palco para apresentarem a sua música, tendo passado neste espaço bandas conterrâneas como os Cosmic Mass ou os Mendiratta, mas também Triunfo dos Acéfalos, de Santo Tirso, ou os 800 Gondomar, de Rio Tinto.
O legado desta sala como um dos locais de referência da cultura alternativa portuguesa começou a ser trilhado desde a fundação em 2006, através da programação eclética de pessoas como Pedro Jordão (2006-2009) e João Peça (2009-2015).
“Quando era programador do Mercado [Negro] senti que existia uma saturação no mercado cultural que era oferecido por sítios como o Porto, Braga ou Lisboa. Quis trazer uma oferta mais alternativa”, explicou Peça, que também é um dos fundadores do festival aveirense Aveiroshima 2027.
“Os meus interesses passavam por estilos como o hardcore, o crossover, o grunge… eu não queria isso ‘ao poder’, e interessavam-me também outros estilos, mais experimentais, como o free jazz. Queria que estas tribos e estilos diferentes convivessem, nem que fosse pelo elemento de surpresa. Por exemplo, numa noite podias assistir a uma banda de Black Metal satânica, na sala de concertos, e, depois, subir as escadas e deparar-te com uma aula de tango”, descreveu ainda.
Infelizmente, desde o final de janeiro, esta oferta perdeu-se. A sala alternativa foi encerrada depois dos donos do edifício decidirem que pretendiam construir ali um hostel.
Isto não significa que vai ser o fim do Mercado Negro para sempre. António e a restante equipa tentaram contactar a Câmara de Aveiro para encontrar uma solução, como um espaço alternativo, para voltarem ao ativo. No entanto, esta missão mostrou-se infrutífera e, por enquanto, é impossível voltarem a funcionar.
Mas este não é o único espaço em Aveiro a conhecer um destino semelhante. O Café-Concerto Avenida também foi encerrado, permanentemente, devido à especulação imobiliária e à pandemia provocada pela covid-19.
Inspirado pelo trabalho desenvolvido em espaços como o Mercado Negro, o Avenida foi fundado, em 2018, para preencher uma lacuna na cidade de Aveiro: oferecer um espaço onde uma cultura, dita, alternativa pudesse florescer na cidade.
“Não tenho aquela presunção de que o Avenida ocupava um lugar que mais nenhuma sala ocupava ou que mais nenhuma vai ocupar em Aveiro”, explicou o programador e um dos antigos proprietários do Café-Concerto, Hugo Pereira.
“Olho para a cultura como um todo que vai desde as festas populares e tradicionais até ao teatro de performance que acontece em oficinas mais clandestinas. O que tentámos fazer com o Avenida foi dar espaço aos artistas emergentes de todo o tipo de áreas que não tinham espaço”, diz-nos durante uma conversa que aconteceu na Powpow, a sua loja, em Aveiro, de artigos ligados à cultura pop.
No Avenida, era possível assistir a concertos. Por ali passaram nomes como Tomás Wallenstein, PZ, Filipe Karlsson ou Rapaz Ego, sessões de cinema dedicadas a filmes de culto — a primeira (e única) vez que vi o “Laranja Mecânica” foi aqui, em 2019 — a festivais de cinema, como o Porto Femme ou o Shortcutz, sessões de poesia, espetáculos de dança e exposições de fotografia.
Contudo, o histórico edifício que, em abril de 1973, recebeu o III Congresso da Oposição Democrática, não cedeu aos efeitos da pandemia e, em junho de 2022, teve de encerrar as portas.
“Ainda que tivessem um acordo verbal para o pagamento das rendas referentes aos meses de confinamento, em que a sala de espetáculos esteve fechada, os agentes culturais foram confrontados com o aviso do senhorio: ‘Ou pagávamos todas essas rendas já ou íamos embora com o perdão total da dívida’, contam. Não havia muito a decidir”, pode ler-se numa notícia do Público.
Na altura, nesse mesmo artigo, os proprietários, que incluem também Patrícia Surrador e Daniel Fernandes, abordaram ainda a possibilidade do Avenida ser instalado noutro espaço e até re-imaginado como um club, ao estilo do Musicbox ou do Maus Hábitos. Volvidos quase dois anos, Hugo nem refere esta possibilidade.
“Eventualmente, haverá a necessidade de alguém voltar a fazer um projeto deste estilo, mas acredito que o desfecho vai ser o mesmo — principalmente, numa cidade como Aveiro, onde a cultura nunca esteve muito enraizada”, refere o programador, elaborando um pouco mais as suas críticas.
“Por muito que se fale de cultura em Aveiro, faz-se muito pouco. Ou, pelo menos, faz-se muito pouco para pensar a cultura a longo prazo. Quando comecei a trabalhar mais a sério como programador, surgiu a ideia de criar uma incubadora cultural para apoiar os projetos da cidade. A verdade é que já passaram quase 10 anos e continua a não existir”, desabafa.
“Existem vários espaços de criação que fazem muito bem o seu trabalho, mas são projetos de nicho ou pouco abrangentes. Se não temos mais locais, como podemos desenvolver projetos?”, questiona-se. “Isto, eventualmente, leva a que as salas de espetáculos sejam encerradas por não terem força suficiente. Se em Lisboa espaços que são sustentáveis não conseguem sobreviver, como em Aveiro, espaços que não são sustentados, se vão manter abertos?”, acrescenta.
Um vazio que fica por preencher
Não sejamos, totalmente, fatalistas. Aveiro continua a ter cultura e espaços culturais que oferecem uma oferta alternativa.
Seria um desserviço não mencionar locais como o PostLab, que é uma sala de ensaios, de gravação de demos e que também recebe concertos; a livraria independente Gigões e Anantes, considerada uma das melhores dedicadas à literatura infantil; o Estaleiro Teatral, que recebe espetáculos e promove diversas formações; o coletivo A Faina que promove festas dedicadas à música eletrónica em diversos espaços da cidade, promovendo atuações de DJs nacionais e internacionais; o Rockabilio ou o Café Amizade, bares que promovem noites de quiz, concertos, noites de comédia e mesmo pequenas peças de teatro.
Não se pode esquecer também o trabalho que está a ser desenvolvido pelo NRock, o Núcleo de Rock da Associação Académica da Universidade de Aveiro, onde um grupo de estudantes, com vontade de promover uma alternativa às “típicas” noites académicas, organizam concertos com bandas emergentes, como Nunca Mates o Mandarim, Puto ou Jasmim.
No entanto, apesar do esforço de todas estas instituições, numa cidade já por si com uma oferta cultural limitada, o encerramento de espaços como o Mercado Negro ou o Avenida acabam por deixar uma grande mossa em Aveiro.
“A cultura em Aveiro não morreu, nem coisa que se pareça”, começa por recordar António da Silva Santos. “Contudo, dependemos de espaços que não têm uma oferta adequada para as novas gerações mais interessadas em cultura e música. O Mercado tinha uma forma diferente de atuar dos outros bares, e Aveiro ficou completamente órfã dessa vontade”, confessa.
“Promovíamos um encontro de várias culturas num espaço gratuito, onde existiam apresentações de bandas emergentes e que agora deixam de ter um sítio para se apresentarem. Um espaço para a leitura de poesia, apresentação de livros, discussões de temas. Um local onde era possível apresentar trabalhos de arte, de escultura, de pintura, de fotografia, de desenho”, descreve. “Neste momento não existe nenhum espaço semelhante e não vejo com grandes perspetivas de que se possa existir alguma coisa deste género”, conclui.
O programador do Avenida olha para estes encerramentos como um retrocesso cultural com consequências para os donos destes espaços, mas também para os artistas e os cidadãos.
“No fim acabamos todos por perder”, começa por explicar. “Perdem as pessoas que já consumiam porque agora têm de procurar soluções fora da sua área de residência; perdem os criadores emergentes que deixam de ter um espaço para mostrarem a sua arte e perde-se a tentativa de criar hábitos de consumo de cultura, porque a realidade é que de cada vez que uma casa fecha, temos de voltar à estaca zero. Mesmo que alguém volte a pegar num projeto como o Avenida é necessário voltar a habituar as pessoas para frequentarem o espaço”, diz Hugo Pereira.
Com estes entraves e estas dificuldades, é normal os programadores terem recebido a notícia que Aveiro ia ser a Capital Portuguesa da Cultura com alguma amargura.
“É ótimo a região ter recebido esta distinção, mas é preciso saber aproveitá-la. É importante não acontecerem coisas como alguém vir de fora da cidade, numa terça-feira, e não estar a acontecer nada. A cultura não é só à sexta e ao sábado”, afirma o programador do Avenida.
“Existe um grande investimento e injeção de capital no início, na promoção de eventos e construção de palcos, mas é importante que isto não seja abandonado. Este é um projeto que deveria deixar raízes com potencial para crescerem no futuro, como aconteceu em cidades como o Porto ou Guimarães”, afirma Peça.
É fácil perceber porque é que este assunto divide os responsáveis das salas de espetáculos aveirenses, mas e qual é a opinião das pessoas que dependem destes sítios para mostrarem o seu trabalho? O que pensam os artistas da cidade sobre este título?
Da expectativa à indiferença: a visão da classe artística
Todos querem que a Capital Portuguesa da Cultura funcione, atraia uma nova audiência e represente novos fundos para os artistas da cidade, mas a verdade é que reina uma desconfiança sobre o que pode existir de positivo nesta distinção.
Para traçar este retrato, um dos primeiros artistas com quem falámos foi João Sarnadas, mais conhecido como Coelho Radioativo. Aveirense de gema, tem se afirmado como um dos principais nomes da vanguarda da música alternativa portuguesa, com os seus discos a solo, como “Coelho Radioactivo e Os Plutónios”, de 2022, e em projetos como os Glockenwise ou José Pinhal Post Mortem Experience.
Apesar de ter continuado a visitar a cidade e a frequentar espaços como o Gretua ou Mercado Negro, abandonou a sua cidade, em direção ao Porto, para vingar e ter mais oportunidades no mundo da música.
Ele acabaria por regressar a Aveiro, durante a pandemia, e, atualmente, encontra-se, novamente, a viver aqui. Aos poucos, está a integrar-se mais uma vez na cultura da cidade. No ano passado, em abril, apresentou “Coelho Radioactivo e Os Plutónios” no Gretua e, em julho, vai fazer parte de um projeto, com a CRL – Central Elétrica e a Banda da Quinta do Picado, que está incluído no Festival dos Canais e na programação da Capital da Cultura Portuguesa.
Ao olhar para o panorama atual da cidade, o artista refere que sente que existem menos coisas a acontecer, algo que está diretamente ligado ao facto de os espaços culturais estarem a ser encerrados.
Quando começamos a falar sobre a programação da Capital Portuguesa da Cultura, João afirma que existem alguns espetáculos interessantes que podem contribuir para uma aproximação do público a novos hábitos de consumo cultural, no entanto, fica reticente em diversos aspetos, nomeadamente, em como isto pode ajudar os artistas e agentes locais.
“Como músico e artista de Aveiro, fico satisfeito que existam mais investimentos em cultura e este esforço. Esta é uma cidade que tem muito potencial, com a presença de escolas de artes, como a José Estevão, que, inclusive, tem equipamento próprio, como um auditório, e muitas salas que não estão a ser utilizadas, mas que poderiam ser aproveitadas, como o edifício Fernando Távora. Efetivamente, se este potencial se concretizar é, realmente, muito positivo”, enumera Sarnadas.
“Contudo, com o desenvolvimento do projeto da Capital da Cultura, percebe-se que o executivo, de facto, tem visões muito definidas do que é que interessa culturalmente ao trazer produções de fora e investir em produções de maior dimensão”, aponta. “Na minha perspetiva, devia existir mais espaço para trabalhar com os intervenientes culturais da cidade. Observo muitos colegas que foram postos de parte e não fazem parte deste projeto”.
O autor de “Canções Mortas” faz questão de reforçar que não é contra os eventos de maior dimensão e que apelam a um público mais geral e comercial. É importante haver espaço para tudo. O que lhe preocupa é estar a ser desperdiçada esta oportunidade para criar um “ecossistema cultura que podia ser mais sustentável e duradouro”.
Esta aposta da cidade parece ter deixado alguns dos artistas da cidade alienados. Este sentimento é refletido por Miguel Menano, vocalista e guitarrista de uma das bandas mais excitantes a surgir de Aveiro nos últimos anos, os Cosmic Mass.
Após surgirem no circuito musical da cidade — o seu primeiro concerto foi no Mercado Negro — a banda de garage rock começou a atuar cada vez mais longe de casa e associaram-se à editora Gig.Rocks, de Braga, que trabalha com bandas como Unsafe Space Garden, Gator, The Alligator ou Mike Vhiles.
Acima de tudo, quando perguntamos ao artista aveirense de 30 anos o que sentiu após descobrir que a sua cidade é a Capital Portuguesa da Cultura este admite que ficou pela “indiferença”.
“A pergunta que coloco é: como isso vai beneficiar Aveiro?”, levanta Miguel. “Imagino que até possa beneficiar o turismo da cidade, ao atrair mais turistas, mas como vai contribuir para gerar um apoio contínuo?”, questiona-se.
Falar sobre “apoios” com os Cosmic Mass é um assunto sensível. Em fevereiro de 2022, a banda realizou uma tour europeia, por países como Espanha, França, Bélgica e Suíça. Aconselhados pela Gig.Rocks, estes pediram apoios à Câmara Municipal de Aveiro para pagar as despesas das deslocações.
O grupo entrou em contacto com os dirigentes municipais, agendaram reuniões e conseguiram um acordo que, inicialmente, parecia bastante favorável.
“Meses antes da tour avançar, entrámos em contacto com o vereador, tivemos várias reuniões e pedimos apoios em questões logísticas. Houve uma resposta positiva por parte das autoridades. Em troca comprometemo-nos a divulgar o apoio da câmara através das redes de Cosmic Mass e colocar o logótipo visível no cartaz da Eurotour (o próprio cartaz e plano de comunicação foram aprovados pela CMA). O Diário de Aveiro fez-nos uma entrevista telefónica em tour em que mencionamos esse apoio e a mesma menção saiu na edição impressa do dia 24 de fevereiro de 2022“.
Miguel acrescentou que também era suposto terem participado no projeto “Artistas no Território”, promovido pela Câmara Municipal de Aveiro, através do Teatro Aveirense, e inserido na estratégia “Cultura em Tempos de (In)Certeza”, onde músicos gravam vídeos a atuar em locais emblemáticos da cidade.
Tudo parecia tratado, mas, quando ainda nem tinham ido em digressão e os problemas já tinham começado a aparecer. “O vídeo era para ser filmado antes de irmos. Mandámos e-mail atrás de e-mail a diferentes pessoas. O último, inclusive, foi enviado ao próprio Presidente, José Ribau Esteves, no dia 30 de dezembro de 2022”, recorda
Para piorar a situação, depois da digressão, também não receberam qualquer tipo de feedback relativamente aos apoios financeiros acordados. “Até agora não recebemos nada”, confessa. “Não tivemos nenhuma resposta e, obviamente, já deixámos a coisa morrer. Não conseguimos fazer nada em relação a isso”, admite
“Tínhamos uma equipa para assegurar as filmagens, a edição do suposto vídeo, tudo. E ficámos de mãos a abanar”, lamenta, reforçando que, posta esta situação, sempre que lhe perguntarem alguma coisa sobre a Câmara de Aveiro, relativamente a este período temporal, dificilmente conseguirá partilhar uma opinião positiva.
A Comunidade Cultura e Arte (CCA) tentou contactar a Câmara Municipal para comentar esta situação, contudo, sem sucesso.
Existem diversas dificuldades para criar música em Aveiro, explica-nos Vitor Hugo dos Moonshiners. O vocalista e guitarrista, de 33 anos, da banda de blues defende que em Aveiro existe um circuito bastante fechado onde é complicado os músicos singrarem.
“É muito difícil um artista furar e triunfar fora da cidade. Até podemos fazer coisas maravilhosas, mas, muitas vezes, acabam por morrer na praia porque os projetos não conseguem entrar nas programações de cidades como o Porto ou Lisboa. Isto foi algo que sempre sentimos na pele”, exemplifica. “Existem poucas pontes para vingar no panorama nacional”.
Sofia Marques, mais conhecida pelo nome artístico MEMA., confessa que faz falta mais infraestruturas que ajudem os artistas na criação artística. “Em Aveiro existem poucos espaços para ensaiar, que é algo que parece muito básico, mas essencial para músicos, visto que a maioria de nós vive em apartamentos e não podemos fazer assim tanto barulho”, descreve.
“Adorava assistir à criação de um Hub cultural como existe no Porto, caso do STOP, ou em Lisboa”, confessa. “Estes espaços são importantes porque, além de conseguirmos praticar, existe também a possibilidade de surgirem sinergias entre os vários artistas que frequentam este espaço, o que facilita a troca de ideias e ajuda-nos a manter-nos inspirados”, afirma a cantora.
O que dizem os aveirenses?
Já olhámos para as visões de programadores e de artistas sobre o que está a acontecer em Aveiro, mas e o que dizem os espetadores que, regularmente, ocupam os lugares destas salas e gastam do seu dinheiro nestes espetáculos?
Para conseguir responder a esta questão falámos com pessoas que conhecem bem os espaços culturais de Aveiro, tem por hábito frequentar eventos na cidade, mas também fora dela, conseguindo assim fazer uma comparação com o que está a acontecer noutras regiões portuguesas.
O Tiago Conde é uma daquelas caras que se tornou uma presença recorrente em espaços como o Teatro Aveirense ou o Gretua, onde, recentemente, viu Mary Ocher (espetáculo com selo da Capital Portuguesa da Cultura), a 16 de março, e o ciclo de concertos Supernova, com atuações de B Fachada, O Marta e Malva, a 6 de abril.
Um ávido espetador de concertos, inicialmente, ainda sentiu algum entusiasmo com esta distinção, uma vez que poderia significar um maior investimento e promoção da cidade enquanto centro cultural do país pelo menos durante um ano.
No entanto, após ver a programação instalou-se a desilusão. “Quando vi a programação não vi grande distinção entre o que é habitual existir e o que não é”, confessa. “Não existiu um aumento da oferta, apenas a sua manutenção. Ainda fiquei com alguma curiosidade para ver alguns espetáculos, mas esta desapareceu assim que vi os preços”, diz.
O espetador defende que um dos maiores problemas desta iniciativa é a comunicação dos eventos, algo que espelha o que já acontecia na cidade e não parece ter melhorado.
“Mesmo antes de ser Capital Portuguesa da Cultura não havia uma grande divulgação dos programas trimestrais da cultura em Aveiro nas redes sociais, em espaços públicos ou com a distribuição de programas. O mesmo aconteceu com esta nova programação”, descreve, salientando o pouco esforço que houve, apesar da magnitude deste título.
“É engraçado porque, por vezes, vemos pequenos eventos culturais a acontecer nas partes mais distintas e descentralizadas do país, mas quando olhamos para um evento com forte incentivo do Ministério da Cultura, notamos que houve pouca ou quase nenhuma divulgação”, confessa.
Há semelhança do que os programadores e os artistas disseram, existe alguma desconfiança para com esta distinção e solidariedade com o encerramento das salas de espetáculos, algo que retira o mérito da cidade.
“Estes dois espaços promoviam uma oferta cultural variada e dentro de uma esfera menos mainstream que atraía gente de diferentes gerações, cidades e nichos”, explica Tiago. “Enquanto o Mercado Negro era visto como um marco da cidade da cena alternativa, o Avenida trazia uma boa diversidade na oferta da sua agenda cultural que não discriminava ninguém”, acrescenta.
Estes sentimentos são replicados por Ana Margarida Paiva, também uma presença regular não só em espetáculos na cidade de Aveiro, mas também nos seus arredores. Por exemplo, em fevereiro, esteve na Casa da Criatividade, em S. João da Madeira, para assistir a um concerto da cantautora Milhanas.
“O encerramento destes espaços culturais foram um murro no estômago à cultura independente aveirense. Imensos estabelecimentos não resistiram à pandemia e o Avenida foi um deles, mas não poderia ter sido feito mais? Não podemos baixar os braços tão facilmente, há que lutar. E quanto ao Mercado Negro, não deixa de ser irónico perdermos precisamente no ano em que somos Capital Europeia da Cultura”, declara.
“Visto que são dois sítios que, futuramente, vão dar lugar a alojamentos locais, deixo um apelo para se começar a refletir mais sobre as consequências da especulação imobiliária e do poder político, da influência daqueles que trabalham os espaços culturais de domínio privado, e sobre a importância do público”, diz.
Apesar de tudo, Ana deixa alguns elogios à programação apresentada, considerando-a “bastante diversificada” e apelativa a diferentes faixas etárias, mas não esconde que gostaria de ver um maior investimento feito na cidade.
“A questão para mim é: ‘o que gostaria de ver a ser feito mais fora destas festividades?‘”, argumenta. “Não devemos dar importância à cultura só quando nos é conveniente, mas sempre. Que este título sirva para Aveiro continuar a evoluir”, afirma.
Uma aposta para o futuro de Aveiro?
No centro desta iniciativa havia vários objetivos, mas existe um que iremos destacar: a criação de uma nova e sustentável audiência de espetadores que continuem interessados em assistir à oferta cultural da cidade.
“O presente ano será muito importante naquilo que são o alavancar de novos hábitos e mais hábitos culturais por parte dos nossos munícipes, mas também com uma exposição maior dos nossos equipamentos culturais, sejam eles de caráter mais privado ou não”, descreve José Pina, acrescentando que há uma grande vontade que os públicos de outras regiões olhem para Aveiro como um polo forte de oferta, programação e criação cultural.
Apesar de todos desejarem que esta missão seja um sucesso, entre os nossos entrevistados, poucos são aqueles que acreditam na eficácia deste plano.
“Esta programação revela uma visão pouco sustentável a nível de criação de públicos e vai trazer resultados efémeros”, confessa João Sarnadas. “É importante apoiar as associações locais, os músicos e artistas da cidade para que, com tempo, tenham vontade de se instalar e criar projetos a longo prazo aqui”, recorda.
Apesar de tudo, dizer que a Capital Portuguesa da Cultura é um falhanço parece-nos bastante exagerado, afinal, o ano ainda nem sequer acabou e é impossível tirar esse tipo de conclusões. Mas os entrevistados parecem desapontados e partilharam algumas sugestões daquilo que gostariam de ter visto a acontecer.
O Coelho Radioativo refere que gostava de ver um maior financiamento a instituições, associações recreativas ou grupos técnicos para que se possa criar um ecossistema com sinergias próprias e que possam ajudar a criar um plano cultural sustentável e de longo prazo.
Contudo, recorda que não é suficiente apenas atribuir mais apoios financeiros aos artistas, é preciso criar condições para os fixar na cidade.
“Por exemplo, no Porto, existe o Criatório, um projeto anual de apoios à criação e programação artísticas, mas não é por causa disso que as pessoas continuam lá. Existe um panorama cultural que a Câmara conseguiu identificar e arranjar uma maneira de mercantilizar”, explica.
“Acabam ambos por ganhar com este investimento, os artistas têm mais ajudas e conseguem criar projetos com continuidade, enquanto a cidade atrai mais pessoas de fora e mantém os habitantes satisfeitos. Esta dinâmica cria um tecido cultural ativo com o envolvimento de artistas, iniciativas privadas e a Câmara”, conclui.
Também é lançado um apelo para se darem mais oportunidades aos produtores independentes com ideias inovadoras.
“Gostava de assistir a um levantamento dos pequenos produtores e das pessoas que, apesar de não terem recursos ou uma associação criada, tem jeito e estão interessadas em fazer cultura em Aveiro”, confessa João Peça.
“É importante produzir mais eventos, mas também garantir melhores condições, aos artistas que vem atuar à cidade. Não podemos continuar a prometer percentagens de bilheteiras em vez de caches. É um modelo incerto e que tira a vontade aos artistas de virem cá tocar”, acrescenta.
O antigo proprietário do Mercado Negro, António da Silva Santos, também apoia este trabalho de levantamento e investigação, mas de espaços, regiões e símbolos icónicos, dando como exemplo zonas como a Praia da Mira ou a Torreira, de forma a serem mais bem aproveitados e a tornarem-se mais apelativos aos cidadãos e turistas.
“É necessário criar um grupo intelectualmente honesto que se questione: será que isto tem interesse para os aveirenses? Será que isto tem lugar na noite da cidade? Não porque é algo giro e está na moda, mas sim porque somos nós que a fazemos”, declara.
“Nós temos de ser genuínos, nós temos que ser Aveiro. E Aveiro, enquanto Capital Portuguesa da Cultura, tem de mostrar a Portugal que tem cultura e faz uma cultura diferente. Não queremos ser apenas a cidade onde as pessoas vêm, comem um ovo mole, dão uma voltinha na ria, bebem um licor de alguidar e vão-se embora, porque não têm absolutamente mais nada para fazer. Temos de mostrar às pessoas o que é um marnoto, uma salineira ou uma vendedora de peixe”, diz.
A somar a estes “desejos”, é também expressa a vontade da existência de uma cultura mais diversa e acessível.
“Seria interessante se existisse uma maior oferta para além daquela que é habitual existir na cidade, assim como mais oportunidades a artistas locais de expor a sua arte, de utilizar a universidade e escolas como plataformas de promoção da arte local e criar parcerias para divulgá-la”, refere Tiago Conde. “A oferta cultural na sua grande maioria deveria ser de cariz gratuito ou com um preço reduzido para residentes em Aveiro para facilitar o acesso da população à cultura”, sugere.
Vivemos uma fase de grandes transformações e mudanças na cultura, não só aveirense, mas em todo o Portugal.
Não lamentamos apenas o encerramento do Mercado Negro ou do Avenida, em Lisboa, sítios icónicos como o Sabotage encerraram as portas e outros, como a Casa Independente, vão conhecer o mesmo destino, em Coimbra, o Aqui Base Tango também foi obrigado a deixar de funcionar.
As expectativas estão altas para perceber quais vão ser os efeitos da Capital Portugal da Cultura e perceber se esta iniciativa vai trazer frutos.
Já percebemos que Aveiro tem o potencial, mas será que vamos assistir ao nascimento de um novo polo cultural no centro do país que vá ajudar a descentralizar as atenções de Lisboa e Porto?
Dificilmente, conseguiremos responder a estas questões agora, quando a programação ainda nem a meio vai.
Enquanto aguardamos, esperamos encontrar o leitor no Gretua, no Rockabilio ou no Café Amizade para fazermos um brinde. À porta do Teatro Aveirense ou do VIC para trocarmos um dedo de conversa depois de um concerto inesquecível.
Só não se esqueça de uma coisa: Aveiro não é apenas uma cidade onde se come ovos moles e os seus habitantes trocam os “v”s pelos “b”s e dizem os “jolhos” em vez de os “olhos”. Aveiro é uma cidade com muito potencial e muito para oferecer. Basta dar a oportunidade. Ou um palco.