Reportagem. Calema no Estádio da Luz: uma noite histórica (e simbólica) para a música feita em português

por Ricardo Farinha,    8 Junho, 2025
Reportagem. Calema no Estádio da Luz: uma noite histórica (e simbólica) para a música feita em português
Fotografia de Hugo Moreira
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Que não haja dúvidas de que o que se viveu este sábado no Estádio da Luz, em Lisboa, foi um momento histórico. Pela primeira vez na longa história da música portuguesa e cantada em português — com os diferentes sotaques que compõem a lusofonia — uma banda apresentou-se no maior estádio do país, a casa do Sport Lisboa e Benfica, perante cerca de 50 mil pessoas. Os Calema definiram uma nova fasquia, naquilo que foi também um acontecimento cultural simbólico que permite muitas leituras.

Primeiro, vamos aos números. Estamos a falar de uma multidão que só caberia em três datas na MEO Arena. E, para se ter ideia da escala e do quão longe os Calema conseguiram chegar, estima-se que São Tomé e Príncipe, o país onde nasceram e cresceram, tenha hoje cerca de 230 mil habitantes. Ou seja, atuaram perante uma plateia igual a cerca de um quarto da população do seu país. Num país de 10 milhões de pessoas como Portugal, é como se um artista português tocasse para mais de dois milhões de pessoas numa única performance.

Fotografia de Simão Alves

O concerto levou cerca de um ano a ser preparado e envolveu uma equipa de perto de mil profissionais. No dia antes do espetáculo, nos bastidores do Estádio da Luz, falámos brevemente com os irmãos Fradique e António Mendes Ferreira, na altura ainda focados em resolver alguns detalhes técnicos no que dizia respeito à componente audiovisual — o concerto foi, naturalmente, filmado. E toda a dinâmica do posicionamento em palco para aparecerem da melhor forma nos ecrãs gigantes exigia várias arestas por limar.

“Só nos faltam alguns detalhes da parte técnica, devido à dimensão deste espetáculo”, explicava António. “Foi um ano de muitas reuniões e muitos detalhes”, acrescentou Fradique. “É realmente bastante complexo e tivemos a opinião de todos aqueles que trabalham connosco, pelo facto de ser algo inédito, único e histórico. O Estádio da Luz tem uma grandeza muito própria e o tipo de espetáculo envolveu imensos pequenos detalhes. Já estamos a ensaiar há uma semana, a fazer o show de mais de duas horas e meia duas vezes por dia.”

Fotografia de Hugo Moreira
Fotografia de Hugo Moreira

António Mendes Ferreira, o mais novo dos irmãos, aponta para a longa caminhada que os trouxe aqui. “Quando éramos mais novos, nunca imaginámos que a vida nos colocasse aqui. É muito gratificante saber que nos conseguimos conectar com milhões de pessoas. Lembro-me de termos dezenas de fãs, hoje são milhões. E todo esse amor, todas essas ligações, vão dar agora ao Estádio da Luz. Para nós é mesmo uma benção.”

Fradique assume que o “estádio é uma conquista”, mas olha para este acontecimento como algo maior do que os próprios Calema. “É praticamente como se nós estivéssemos num meio em que todas as pessoas estão conectadas e dissessem que seria bom estarmos todos juntos no estádio. E calhou sermos nós os representantes dessas pessoas, porque elas se identificaram com a nossa música e a nossa história.”

Criados numa família pobre em São Tomé e Príncipe, desde cedo desenvolveram uma paixão pela música. Em 2008, tinham 21 e 16 anos, vieram para Portugal estudar e tentar seguir o sonho de construir uma carreira artística. Acabariam por dar passos mais sérios em França, onde estiveram durante algum tempo, até se estabelecerem no mercado português — aos poucos e poucos, single após single, de disco em disco, tornaram-se das maiores estrelas pop do país e do mundo lusófono.

Fotografia de Hugo Moreira

Trabalhadores e determinados, os Calema (cujo nome significa a “rebentação do mar” na costa africana) subiram a pulso com canções pop, muitas vezes sobre histórias de amor com que facilmente qualquer pessoa se pode identificar, ou nalguns casos em temas mais autobiográficos em que os irmãos refletem sobre a sua longa jornada.

No Estádio da Luz, o momento era indubitavelmente de celebração. Da sua música e da sua história, claro, mas os Calema quiseram levar a coisa mais longe. Desde cedo que posicionaram este concerto como uma celebração da própria lusofonia — os cartazes, por exemplo, ostentavam as bandeiras de todos os países de expressão portuguesa. E isso também se refletiu em palco, através dos inúmeros convidados que convocaram para este espetáculo especial — e que acaba por também representar o espólio dos Calema, rico em colaborações diversas, com músicos de diferentes origens, sobretudo no campo lusófono.

Fotografia de Hugo Moreira

Sempre com uma postura modesta e aparentemente sem ego, os irmãos Mendes Ferreira decidiram partilhar aquele lugar de destaque, o maior palco possível em Portugal, com Bill Lima (São Tomé e Príncipe), Manecas Costa (Guiné-Bissau), Dino D’Santiago (Cabo Verde/Portugal), Mariza (Portugal), Sara Correia (Portugal), João Pedro Pais (Portugal), Dilsinho (Brasil) e TAYC (França). Além disso, quiseram homenagear uma pessoa fundamental no seu percurso, que tanto contribuiu para os inspirar como para abrir portas, ao convidarem Anselmo Ralph (Angola) para interpretar uma das suas mais célebres canções, o êxito pop “Não Me Toca”.

A condizer com um recinto grandioso, a produção foi igualmente ambiciosa. No amplo palco, dois ecrãs gigantes unidos por uma estrutura alta em forma de triângulo. Da base do palco, saíam três línguas em direção ao público, rodeadas de pessoas entusiasmadas por poderem estar próximas dos artistas. Não faltaram efeitos de pirotecnia, fogo de artifício, confetti e efeitos de luzes. Contrataram uma equipa internacional de bailarinas — às quais se juntaram outras profissionais locais — que já trabalhou com estrelas mundiais como Lady Gaga, Drake ou Rihanna.

Fotografia de Hugo Moreira

Ao longo das três horas de espetáculo, sempre com a sua banda na retaguarda — também ela um espelho desta lusofonia, com músicos portugueses, angolanos, cabo-verdianos — foram convocando diferentes conjuntos de instrumentistas ao palco, conforme o que as canções pediam. Houve secções de cordas, um grupo tradicional de batukadeiras, percussionistas africanos, guitarra portuguesa do fado e diferentes bailarinos de cada expressão que iam adornando a performance, numa autêntica exposição e comemoração das diferentes culturas e comunidades lusófonas. Houve espaço para as canções mais íntimas, entoadas à guitarra e sob a luz de milhares lanternas de telemóveis; mas também para os temas mais festivos e animados, que incitavam à dança e ao balançar dos corpos.

“Esta é uma lusofonia que se conecta através da música e dos diferentes nossos crioulos”, disseram a dada altura os irmãos Calema, que se mostraram emocionados e comovidos em diversos momentos da noite. “Conseguimos, já fizemos história.”

Esta música popular de raízes africanas, que naturalmente se mistura com o fado ou com elementos da música global, gerando diversos híbridos que pouco importa catalogar, é também o espelho de um Portugal misturado a que todos devíamos aspirar. Entre as mais de 50 mil pessoas que rumaram ao Estádio da Luz, que vieram de norte a sul do país (e não só), havia gente de todas as idades, todos os tons de pele, todos os géneros, com uma diversidade imensa de sotaques.

Fotografia de Simão Alves

São Tomé e Príncipe e Cabo Verde, os dois países de expressão portuguesa fundados pelo colonialismo, que eram ilhas sem habitantes quando os portugueses lá chegaram, e cujas populações são o resultado dessa mestiçagem — violenta, mas real — de povos africanos e europeus, são eles próprios esses países misturados, essas nações crioulas que hoje importa celebrar — e enaltecer enquanto visão futura de maior harmonia entre pessoas.

As pessoas e as sociedades estão repletas de contradições e assumir isso só poderá ser um sinal de maturidade. Numa altura em que a extrema-direita ganha cada vez mais votos, dois homens negros de sotaque são-tomense tornam-se os primeiros músicos que cantam em português a atuar no maior estádio de Portugal, o da Luz — sendo o Benfica, já agora, uma instituição com uma relevância cultural significativa nos diferentes PALOP. E importa dizer que não são dois países, aquele que cada vez mais é conquistado pela retórica populista e o outro que celebra a lusofonia e a diversidade. Essa polarização, além de só contribuir ainda mais para os problemas, não é verdadeira — estes dois países coexistem, contraditoriamente entrelaçados.

Fotografia de Hugo Moreira

As músicas dos Calema não são incómodas nem contêm crítica social e política. Para muitos, podem ser encaradas como um entretenimento ligeiro. Não apontam os problemas dos dias de hoje nem beliscam — diretamente — os velhos preconceitos e as tradicionais dinâmicas de poder na lusofonia. Mas, ao mesmo tempo, os Calema e o seu sucesso ímpar representam precisamente isso, de forma natural, sem fazerem bandeira de qualquer causa. Estas canções que não põem o dedo na ferida talvez contribuam tanto ou mais que as músicas mais ativistas para este Portugal misturado — com menos fricções, com menos combate, num ambiente de maior harmonia que, mesmo que de forma injusta para todos os artistas que usam a sua voz para denunciar os problemas sociais e políticos, talvez acabe por gerar mais frutos. Se a música que critica, que denuncia, que põe o dedo na ferida, é necessária e vital; as canções aparentemente inofensivas dos Calema parecem ser tão ou mais eficazes. E os Calema fizeram isto tudo, enquanto música popular orgânica, rompendo com as bolhas das elites culturais, sem uma grande atenção da imprensa especializada ou da intelligentsia artística. Talvez seja importante refletir sobre estas questões no país de hoje.

“Depois do Estádio da Luz, continuamos a trabalhar. Não há palcos maiores em Portugal, mas podem-se criar novos conceitos. Há coisas novas e interessantes a caminho. Queremos ir a todos os sítios que tiverem pessoas”, remata Fradique Mendes Ferreira sobre o auspicioso futuro dos Calema, a dupla dos humildes irmãos são-tomenses que, no país onde vivem e que também é a sua casa, para onde se mudaram em busca do sonho e de uma vida melhor, ficaram sem um palco maior para conquistar. A vista do topo só pode ser bonita.

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