Reportagem. Cinema de animação: o “parente pobre” do cinema português que nos levou aos Óscares 

por Jorge Tabuada,    19 Junho, 2023
Reportagem. Cinema de animação: o “parente pobre” do cinema português que nos levou aos Óscares 
“Ice Merchants”, de João Gonzalez
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Esta reportagem foi realizada no âmbito de um atelier de Jornalismo da licenciatura em Ciências da Comunicação da NOVA FCSH.

Faltam os apoios ao cinema que é considerado o “parente pobre” do cinema português. Apesar das dificuldades, é ao cinema de animação que pertence a primeira nomeação de um filme português aos Óscares e também a realizadora portuguesa mais premiada de sempre (Regina Pessoa).

Eu sempre quis fazer filmes”, afirma prontamente Mário Gajo de Carvalho, realizador, produtor e distribuidor cinematográfico, e fundador da produtora Os Filmes do Gajo. Ainda quando andava a estudar Artes Plásticas na Escola Artística do Porto, o realizador admite que pensava em “vender quadros” para poder ter dinheiro para fazer os seus filmes.

Foi durante o seu percurso académico que Mário teve oportunidade de contactar com Abi Feijó, realizador português de cinema de animação que muito o inspirou a fazer filmes. Com ele realizou o seu primeiro filme em stop motion, ainda na faculdade. “Foi ótimo perceber o que eu podia fazer a partir do nada”, explica Mário, que neste momento se encontra a realizar filmagens para o Movimento Patrimonial pela Música Portuguesa (MPMP) na praia da Baía em Peniche, para onde se mudou recentemente, numa casa ainda por mobilar, ainda com sacos por desempacotar.

Mário na Praia da Baía em Peniche onde se encontra a realizar filmagens para o MPMP / DR

Ao nível da formação, o realizador defende que continua a fazer falta uma “grande escola de animação” em Portugal, uma vez que esta se encontra em cursos misturada com outras áreas. Profissionalmente, Mário realizou a curta-metragem “Os Milionários” em 2011 e, mais tarde, em 2019 o filme “O Rapaz e a Coruja”. 

Para Mário, a maior dificuldade de um realizador de animação foca-se no “tempo despendido” no trabalho. “Seja qual for a técnica, são sempre técnicas muito demoradas”, revela o realizador, que fala também da constante necessidade de procura de projetos. “Há muita dificuldade em haver continuidade nos projetos. O projeto acaba e ficamos no vazio.” 

Ocasionalmente, o realizador também dá aulas de Educação Visual ao 2.º e 3.º ciclo, algo em que já trabalhava antes de começar a fazer filmes. Mário também já realizou documentários e ficção, mas admite que sempre preferiu as “escolhas de animação” às de ficção.

Fernando Galrito também teve contacto com o cinema de animação desde muito cedo. Realizador, 63 anos, natural de Samora Correia, é diretor artístico do Festival MONSTRA. Aprendeu a projetar filmes aos 4 anos na Casa da Criança da terra onde nasceu, o que fez com que a sua infância ficasse marcada por “filmes de animação experimentais”. Até que aos 18 anos decidiu ir para França estudar cinema. Neste momento, encontra-se desde 1999 a dar aulas no curso de Som e Imagem na Escola Superior de Artes e Design do Instituto Politécnico de Leiria.

Fernando começa por corrigir quem caracteriza o cinema de animação como um “género” de cinema. Não é um género, “é mais uma arte”, citando Guilherme del Toro. E arrisca ainda a considerar o cinema de animação “a arte mais completa de todas”, uma vez que este “tem tudo o que as outras artes têm”, e ainda a capacidade de criar “ilusão de movimento”. “A cada filme há uma reinvenção da imagem e do tempo”, explica. 

Esta é uma posição semelhante à defendida por Mário, que considera o cinema de animação “mais criativo e mais poético” que o restante cinema. “O cinema de animação distingue-se pela técnica, mas dentro do cinema de animação há imensas técnicas.” “As pessoas que fazem documentário de animação vêm da animação, não vêm do documentário”, acrescenta.

Faltam apoios ao cinema de animação em Portugal

É quase impossível realizar cinema de animação em Portugal sem os apoios financeiros que chegam quase sempre por parte do Instituto do Cinema e Audiovisual (ICA), pertencente ao Ministério da Cultura. “É sempre uma dificuldade encontrar apoios fora do ICA, são muito reduzidos”, explica Mário. Neste momento, o limite máximo dos apoios do ICA fixa-se nos 120 mil euros, um valor que representa uma descida em relação a anos anteriores. “Há 20 anos os apoios eram maiores, eram 125 mil euros, não atualizaram com a inflação.” Também não são atribuídos apoios por parte do canal estatal. “A RTP não apoia cinema de animação, por muito estranho que pareça.” 

Para além da falta de investimento público, Fernando salienta que “somos pouco críticos dos apoios das instituições privadas”, por quem também se recebem poucos apoios. Aliás, Mário confessa também sentir grande discrepância nos apoios entregues à ficção e à animação, sendo que o primeiro recebe “muito mais” do que o segundo.

O setor da Cultura ocupou uma percentagem de 0,43% no Orçamento de Estado para 2023, já incluindo as verbas para a RTP e a Agência Lusa. O orçamento que chega à produção cultural é descrito por Mário como “uma centésima” do bolo destinado à cultura. “Enquanto não investirmos em cinema português, as pessoas vão continuar a achar que investir em cinema português é atirar dinheiro para um saco roto.

Fernando lembra também a crise da troika em 2009, pois “o primeiro sítio onde se começou a cortar foi na cultura”. Algo que, para o organizador da MONSTRA, se mostra “caricato” já que “dentro das artes todas, as pessoas que fazem cinema de animação são das mais reconhecidas internacionalmente.” 

Aliado à falta de investimento, Mário aponta como o maior problema do cinema em Portugal “a falta de visibilidade dentro de portas”. Os monopólios a que o cinema português está submetido, a que Fernando chama “uma máquina de propaganda”, levam o público a ver apenas o cinema mais comercial. “Os portugueses não vêm cinema da sua própria língua, veem cinema americano”, ou seja, não têm possibilidade de escolha. “O cinema da sua própria língua é praticamente proibido de passar nas grandes salas ou em horário nobre”. Mário descreve este facto como “um fascismo cultural cinematográfico”, do qual o público não tem culpa.

Só os filmes americanos abrem e fecham telejornais, os filmes portugueses não”, aponta Fernando, que alerta ainda para “um grande desconhecimento por parte dos críticos ao cinema de animação português”. São poucos os jornalistas que marcam presença no lançamento de filmes de cinema de animação português. “Se fossem [filmes] americanos apareciam mais”, segundo a convicção de Fernando. 

O realizador revela ter visto recentemente um estudo feito sobre mulheres no cinema em Portugal, em que não há qualquer referência à mulher mais premiada do cinema português, que é de animação, a Regina Pessoa.

O cinema de animação português é considerado por Mário como “um dos mais ricos do mundo”, dada a sua forte participação em festivais internacionais. “É muito raro não haver filmes portugueses em festivais internacionais.” Os elogios e boa receções são testemunhados pelos dois realizadores que já levaram os seus filmes várias vezes ao estrangeiro. “Não me lembro de ter alguma reação negativa.

Fernando evidencia a qualidade do cinema de animação português, ao constatar que os festivais de cinema de Annecy e de Zagreb possuem tantos ou mais filmes portugueses na sua competição do que outros países maiores, “com mais financiamento” para o seu cinema. 

Como proposta para a maior fruição do cinema de animação português, Mário sugere à classe política a utilização de modelos estrangeiros como “quotas mínimas” para o cinema nacional em todas as salas, como se aplica em França. Sem terem combinado, os dois realizadores acabaram por apresentar uma sugestão de projeto semelhante, ao idealizarem “sessões de curtas-metragens” de cinema de animação português nas salas de cinema mais comercial.

MONSTRA e outros festivais de cinema de animação 

Em Portugal, realizam-se apenas dois grandes festivais de cinema de animação, o MONSTRA em Lisboa e o CINEANIMA em Espinho. Mário atribui uma importância “gigantesca” aos festivais de cinema como método de divulgação, são uma maneira de “trazer o público para a cultura”, um direito constitucional. 

Na verdade, já houve mais festivais de cinema de animação em Portugal do que atualmente, mas que pararam “por falta de apoios públicos”. A pouca divulgação do cinema de animação leva a que muitos realizadores “não tenham o seu trabalho valorizado”, daí que Mário acredite que os melhores realizadores portugueses são ainda “pouco conhecidos”.

No papel de organizador do festival MONSTRA, Fernando admite que o seu festival recebe metade dos apoios municipais que os outros festivais de cinema em Lisboa, apesar de receber aproximadamente o mesmo público que os outros. A MONSTRA realiza-se desde 2000, e este ano foi responsável pela exibição de mais de 400 filmes.

Juntando ao problema da falta de financiamento que não permite trazer tantos convidados ou dar lugar a mais trabalhadores, Fernando aponta o facto de Lisboa ter “triplicado os preços” nos hotéis e na restauração devido ao turismo, como uma das principais dificuldades na organização do festival. 

 Muitas vezes, os filmes são exibidos apenas nos festivais em formato “estreia”, e depois não chegam às salas de cinema, algo que Mário descreve como uma “muralha construída” em volta do cinema português, entre os realizadores e o seu público. “Estão a privar as pessoas dos filmes”. “São sessões esgotadíssimas nos festivais e depois não chegam ao grande público”. Fernando considera este facto como “redutor” para o cinema, daí que a MONSTRA não esteja submetida a essa obrigatoriedade.

Em Portugal, os festivais encontram-se muito concentrados nos “grandes núcleos urbanos”. “Falta fazer chegar esses filmes a outras zonas do país”. Fernando confessa que tem tentado contribuir para a descentralização através de algumas iniciativas da MONSTRA fora de Lisboa. “A MONSTRA vai a 10 cidades no país” e “a MONSTRINHA vai a 40 cidades”.

Há ainda novos festivais de cinema de animação a emergir como o Festival BANG em Torres Vedras e o Festival de cinema de animação de Mafra. Outros festivais de cinema como o de Vila do Conde também apresentam curtas de animação, embora haja festivais de cinema em que não constem curtas de animação na sua programação.

Mas não só de festivais se faz a sua promoção. Em 2001 com o apoio da Capital Europeia da Cultura foi criada no Porto a Casa da Animação, uma associação cultural sem fins lucrativos para promover e divulgar a animação portuguesa nacional e internacionalmente, a que Mário também pertence, e que realiza anualmente a Festa Mundial da Animação. A esta associação pertence a Animateca, uma base de dados dedicada ao cinema de animação português, tem como objetivo a promoção dos seus profissionais.

João Gonzalez e a nomeação para os Óscares

Em 2023 chegou a primeira vez que um filme português é nomeado para os Óscares, precisamente, uma curta-metragem de animação. Mário considera a recente nomeação aos Óscares de “Ice Merchants” de João Gonzalez, como “mais que justa, mas chegou tarde”. “Veio repor justiça”, acrescenta. 

Ambos os realizadores aproveitaram para realçar filmes de animação anteriores, que receberam “muitos prémios antes”, mas “foram pouco falados”. José Manuel Ribeiro ganhou em 2000 o Cartoon D’or com “A Suspeita” e Regina Pessoa triunfou no Festival de cinema de animação de Annecy com “Tio Tomás, A Contabilidade dos Dias” em 2019 e não tiveram o mesmo mediatismo. “Às vezes foram apenas uma nota de rodapé no telejornal”, refere.

Apesar de não ter vencido o título de Melhor Curta-Metragem de Animação nos Óscares, “Ice Merchants” triunfou com vários prémios no Festival MONSTRA e nos ANNIE Awards, totalizando mais de 70 prémios por mais de 10 países. Fernando mostra-se muito feliz com o protagonismo que esta nomeação trouxe ao cinema de animação português. “Houve muita gente que já não escrevia sobre cinema de animação há imenso tempo e, de repente, começou a escrever.” No entanto, receia que este mediatismo seja apenas uma “onda rápida”, frisando que “é preciso manter a onda no ar, firme.” 

Recentemente, Regina Pessoa, em entrevista ao SAPO, afirmou que a “nomeação para os Óscares é reconhecimento para o parente pobre do cinema português”. Algo concordado pelos dois realizadores indubitavelmente. “Se for um filme de ficção a ser nomeado é muito falado, se for um filme de animação não.

Centenário de Cinema de Animação em Portugal

A aclamada nomeação chega no ano em que o cinema de animação português comemora 100 anos, e por isso a Cinemateca apresentou uma programação especial um dia por mês até ao final do ano dedicado centenário ao cinema de animação, a par com a inauguração de uma exposição em parceria com a MONSTRA.

100 anos depois, agora que a cultura está muito mais acessível a toda a gente, Fernando acredita que o cinema de animação “evoluiu na técnica e artisticamente”, mas que ainda assim “manteve-se fiel às suas temáticas”.

O realizador mostra-se otimista no futuro do cinema de animação português tecendo elogios aos jovens realizadores que realizam “peças fantásticas”, e acreditando que “o cinema de animação português diz muito de nós”. Mário afirma ter “esperança no trabalho feito” e que ainda espera pelo tal “cair da muralha”.

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