Reportagem. Debaixo da lua cheia escondida, um concerto de violinos e um encontro com a morte

por Bernardo Crastes,    26 Junho, 2024
Reportagem. Debaixo da lua cheia escondida, um concerto de violinos e um encontro com a morte
Festival de Sintra 2024 / Fotografia de Rui André Soares – CCA
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A edição de 2024 do Festival de Sintra chegou neste passado fim-de-semana ao seu final. Ao longo de 10 dias, tivemos oportunidade de assistir a quatro das dezenas de espectáculos com os quais o alinhamento contava. Cada um desses quatro espectáculos foi totalmente diferente dos restantes. Entre ver Tomás Wallenstein a solo ao piano numa quinta familiar com vista para o mar, um grupo coral numa igreja gótica iluminada exclusivamente por velas e a harpista Mary Lattimore a actuar no belíssimo Salão Nobre do Palácio de Seteais, o festival surpreendeu sempre, estendendo o conceito de música ao vivo para lá do óbvio e presenteando-nos com experiências inesquecíveis. Para fechar a nossa cobertura do festival com chave de ouro, tomámos parte do conceito que promete tornar-se apanágio do Festival de Sintra: mais uma caminhada-concerto.

Desta vez, o ponto de encontro foi a entrada da Quinta da Regaleira, a umas tardias 23h30. O objectivo desse horário era levar o selecto grupo de cerca de 30 pessoas numa curta visita guiada pela quinta, na qual aprendemos mais sobre o espaço, o seu criador e os seus mistérios e símbolos, antes de um concerto surpresa que aconteceria à meia-noite, algures no recinto de 4 hectares.

Festival de Sintra 2024 / Fotografia de Rui André Soares – CCA

Em frente à Fonte dos Guardiães, soubemos que o trajecto começaria pelo misterioso Poço Iniciático, numa descida em direcção ao interior da Terra que simbolizaria a morte. Será seguro dizer que poucas pessoas terão conhecido aquele espaço à noite, iluminado com luzes cromáticas que lhe deram uma aura desorientante e quase psicadélica. À descida ao poço, seguiu-se uma curta deambulação pelo labirinto subterrâneo que nos leva a diferentes pontos da quinta e que evoca um mundo submerso, pela pedra marítima que compõe as suas paredes. O nosso regresso ao ar livre — ou simbólico renascimento após a morte — fez-se pelo lago da Cascata.

O ambiente de expectativa aguçava-se pela alquimia associada ao espaço, pelos vários tons de azul e vermelho com que se iluminava a quinta e pela luz da Lua Cheia que se difundia pelas nuvens — pois, como é claro, dificilmente Sintra nos presentearia com um céu totalmente limpo para esta noite especial. O destino final da caminhada foi a gruta da Leda, espaço que recebeu o concerto, cujo programa era até então desconhecido para todos os presentes. Na entrada da gruta, as folhas de sala distribuídas dissiparam o mistério: ouviríamos “A Morte e a Donzela”, de Franz Schubert, tocada por um quarteto de cordas.

Festival de Sintra 2024 / Fotografia de Rui André Soares – CCA

A apresentação feita pelo director criativo do festival, Martim Sousa Tavares, traçou o conceito poético da caminhada e do subsequente concerto. Se a caminhada aludiu aos rituais iniciáticos que exploram as noções de nascimento e morte através da sua ligação à terra, o concerto colocar-nos-ia frente a frente com a morte. Schubert, que escreveu esta peça dois anos antes da sua precoce morte, já num estado de saúde débil, fê-lo para convidar a Morte para uma dança que provaria ser derradeira, acolhendo-a e aceitando a sua própria condição de mortiço. Ao longo dos seus quatro andamentos, a peça era às vezes delicada, noutras nervosa e, por várias vezes, solene como o tema pede. Pareceu-nos evocar a frágil relação da humanidade com a mortalidade, que tanto passa pela aceitação, como pela barganha, pela revolta ou pela depressão.

Para dar vida à peça naquela mágica gruta, fomos guiados por quatro solistas. A cargo do primeiro violino, estava o portuense Afonso Fesch; no segundo violino, Emily Davis; na viola d’arco, Kei Tojo; e, por fim, Beatriz Blanco no violoncelo. Ao longo dos quase 40 minutos em que se dividem os quatro andamentos, os músicos pareciam dançar com os seus instrumentos. De forma resoluta, traçavam ovais e outras formas angulosas no ar, adaptando-se ao ritmo ocasionalmente intenso da música que, a certos momentos, parecia quase uma cavalgada.

Festival de Sintra 2024 / Fotografia de Rui André Soares – CCA

Entre os andamentos, que terminavam de forma abrupta, podíamos ouvir lá fora as rãs que habitam os diversos corpos de água da Quinta da Regaleira, trazendo um pouco da Natureza trabalhada para dentro daquele espaço acusticamente perfeito para aquele espectáculo. Por outro lado, quando as camadas sonoras dos instrumentos de cordas se sobrepunham em crescendo, isolando-nos do mundo lá fora, o efeito era assoberbante, fazendo-nos sentir pequenos face à grandiosidade daquilo que ouvíamos. A música fez-nos indagar sobre as motivações que levam os artistas a compor peças tão complexas e imprevisíveis. Mesmo nas condições mais desfavoráveis, a humanidade consegue produzir coisas tão belas que nos fazem sentir vivos. Se tivermos sorte, talvez as coisas que criamos sejam reproduzidas ao longo de séculos, como aconteceu com Schubert.

As palmas do público, reservadas para o final dos quatro andamentos, encheram o pequeno espaço da gruta e instaram o quarteto a despedir-se com mais uma curta peça: a clássica “Danse Macabre”, de Camille Saint-Säens. Entre olhos fechados, acompanhamentos de ritmo com a cabeça e olhares de admiração, o público parecia estar realmente imerso na experiência que ali vivia em conjunto. Sem desfazer os grandes festivais, este último espectáculo a que assistimos no Festival de Sintra fez-nos pensar que um importante futuro das experiências musicais ao vivo cada vez mais deva passar por isto: experiências diferenciadas e intimistas, que nos fazem sentir especiais e mais vivos.

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