Reportagem. Semibreve e a expansão de horizontes artísticos
Os últimos dias do mês de Outubro são especiais. De há vários anos a esta parte, durante pouco mais que um fim-de-semana, Braga recebe um festival sem o qual seria difícil imaginar o panorama cultural bracarense. É uma retumbante história de sucesso desde o ano de 2011: nas propostas, na consequente adesão do público, e nas repercussões à sua passagem.
Desde então, Braga já se tornou cidade capital das Media Arts, e incluiu na Universidade do Minho estudos relativos a esta área. A identidade do festival, plural e experimental, espelha (e à escala do meio mais imediato terá tido um papel influente) uma mudança na atitude dos públicos, que cada vez menos se cingem apenas a uma estética, fiéis apenas a uma mão de géneros musicais ou artísticos. A exploratory electronic music sob a qual o festival se auto-define é universo suficientemente amplo para albergar de tudo um pouco: no mesmo cartaz, encontram-se propostas de ambient pop e jams espaciais de guitarra e sintetizadores; improvisações de vozes e loops, e brutais formalismos em máquinas que agora celebram cinquenta anos. Breadth over depth: amplitude, ao invés da profundidade. Somos mais curiosos e ecléticos, e participamos em diálogos tendencialmente mais globais. Durante pouco mais que um fim-de-semana, o Semibreve é um amplificador dos tempos modernos, e promove, por meio de concertos, instalações e outras iniciativas, esta forma de estar no mundo.
Deixamos de parte a linearidade dos acontecimentos: comecemos, então, pela intensa experiência no concerto de Thomas Ankersmit, que decorreu no Domingo, último dia, no Salão Nobre da Reitoria da Universidade do Minho. O músico situa-se no meio, rodeado pelo público, numa sala comprida, de tectos baixos e ladeada a pedra. Logo no início se estabeleceu a natureza desta experiência: os sons produzidos pelo sintetizador modular Serge eram crus, mais munidos de textura do que de tom, e assemelhavam-se a algo que associamos a descargas, ou explosões: impressões mecânicas, despachadas, impessoais. Ocorreram-me portas a bater — portas a bater com muita força — mas quando no final comparei com impressões de outras pessoas, impuseram-se imagens muito distintas. Um pouco mais tarde no mesmo espectáculo, houve um assalto sónico quase insuportável piorado pela proximidade às colunas — pela intensidade, pelo volume, pelo timbre afiado — pelo que saí do meu lugar e percorri em direcção à parede, quase no ponto de maior distância ao centro possível; um severo lembrar da estrutura orgânica do ouvido, que deve ser protegido nestas circunstâncias. Depois, ao longo de vários minutos, também o som foi de uma ponta à outra e chegou ao espectro do grave, metamorfoseando-se em vibração abrangente a todo o corpo, cada vez mais forte, como tímpanos à escala humana: tanto o chão como as paredes abanavam como se de um tremor de terra se tratasse. No final de tudo, sala rendida e um aplauso imenso. O músico ficou ainda mais um pouco a arrumar a parafernália, enquanto respondia a algumas perguntas dos mais curiosos.
A técnica de Ankersmit e a austeridade do conteúdo sonoro conduzirão, em momento oportuno, a interrogar o que é música. Certamente não há um refrão orelhudo para trautear em uníssono com o público — em verdade, é raro havê-los no Semibreve — nem sequer uma pretensão melódica, ou previsibilidade rítmica. Pelo contrário, a recompensa serve-se na escuta atenta e descomprometida. Sem expectativas: habitar um vazio e tomar as impressões quando chegam. Foi o momento que proporcionou a experiência sensorialmente mais exploratória, mas houve vários outros tipos de territórios, variando tanto no espaço como na proposta sonora. A maior parte dos concertos deu-se na Sala Principal do Theatro Circo, em lugares sentados, e já é tradição que o início do festival se dê num concerto na noite de quinta-feira, na Basílica do Bom Jesus do Monte — que desta vez coube a Clarice Jensen – e que no Sábado passe pela sempre impressionante Capela Imaculada do Seminário Menor, de ousada arquitectura quando considerado o seu contexto religioso, onde se ouviu o concerto de Anja Laudval: recordamos o delicado piano inicial que preparou os ânimos para a consequente experimentação ambient, num concerto que foi aberto a toda a cidade. Para esta edição, introduziu-se ainda uma sala nova, no Auditório de São Frutuoso, que acolheu concertos na tarde de sexta-feira, compensando a supressão dos concertos na sala mais pequena do Theatro Circo.
Ouvimos, aí, a apresentação ao vivo de Inês Malheiro e do trabalho que tem vindo a levar a cabo no estudo da voz como instrumento, como textura, como ponto de partida donde se ergue um farol de significados, expandindo o singular universo que inicia em Deusa Náusea, lançado no final do ano passado. O formato de canção não é evidente; há risco e liberdade, componentes essenciais da improvisação, enquanto se constroem camadas, se estabelecem motivos, e surge um diálogo a diferentes vozes. No dia seguinte, no enevoado ambiente etéreo e narcotizado da black box do gnration, no qual não só a música se ouve de pé como incita ao movimento, Loraine James serve-se dessa atmosfera para nos enredar numa trama imprevisível, onde os sons procuram subterfúgios que as palavras não necessitam: canta, por cima da tecelagem que nos envolve, when I was seven / my dad went to heaven / possibly. São exemplos da abrangência do festival: se Ankersmith foi frio e abstrato, estas duas amostras recolocaram-nos no domínio do humano e do íntimo, desvendando possíveis matrizes para cantautores do futuro.
Ao longo da história do Semibreve, sempre se considerou a imagem como aliada ao som no contexto de espectáculo. Maya Shenfeld e Pedro Maia trabalharam sob o pesado calor de Vila Viçosa para captar sons e imagens que trariam e trabalhariam em palco; os Emeralds reuniram-se para longas jams pontuadas por filmes de grão analógico, automaticamente reminiscentes de infância e tempos idos. Nesta edição em particular, mais deliberadamente se cruzou a linha para um resultado que se considere cinema, e foram disso exemplo duas colaborações de traço nipónico. Tujiko Noriko, que tem uma carreira assinalável nas margens da canção pop, apresentou-se com Joji Koyama, que controlou os pequenos filmes, breves imagens, que se projectaram durante o concerto, e houve ainda o filme-concerto, sem diálogo falado, de Eiko Ishibashi, fruto da colaboração com Ryusuke Hamaguchi, donde resultou Gift, montado a partir de uma reorganização de cenas filmadas para Evil Does Not Exist, e que apenas pode ser visto (e ouvido) ao vivo.
Foi também inaugurada a aliança entre o Semibreve e a Re-Imagine Europe, uma rede europeia que junta vários festivais, num projecto que se prevê ter a duração de quatro anos, e que se materializou, nesta primeira vez, numa conversa entre quatro agitadores culturais, sediados entre Amesterdão, Zagreb, Graz e Bratislava, sobre o papel dos festivais ‘enquanto promotores de valores sociais, equalitários e ecológicos’. Discutiu-se formas e padrões de acção, modelos de organização, a questão da acessibilidade (será um festival como o Semibreve, assumidamente dedicado a exploratory electronic music, necessariamente elitista?), a educação musical nas escolas, o modelo de festival versus intervenções mais espaçadas ao longo do ano; foi destacado o aumento de governos de e votantes em partidos de direita, tendencialmente menos entusiasmados pela cultura. Percebeu-se imediatamente na introdução à conversa que muito haveria para falar — e, infelizmente, falta de tempo para aprofundar alguns dos temas —, mas a ideia que pareceu unir os participantes foi exemplarmente descrita por Davorka Begović, representante do KONTEJNER: propôs que abrir os ouvidos leva a que também a mente se abra, advindo daí mais tolerância, e capacidade de lidar com o desconhecido.
Quem fiquem também memórias de Beatrice Dillon, na black box, reminiscente de um certo minimalismo que aflora no seu disco Workarounds, de 2020, quando produziu sons que percorriam a sala como que em pantufas aveludadas: delicados, espaçosos, calmos; música de dança subtil, de sensibilidade electroacústica; de Kassel Jaeger em colaboração visual com Eleonore Suisse, partindo da guitarra para uma quase homogénea tranquilidade ambient; e, claro, a incontornável Kali Malone: não é a primeira vez que passa por Portugal (nem por Braga), pelo que já houve oportunidade prévia para experienciar ao vivo o que propõe nos seus álbuns imensos. The Sacrificial Code aponta às repetições de motivos em órgão, e entretanto tivemos Living Torch, mas o concerto (sem imagem em movimento) começa num gesto de violoncelo (porventura herdado de Does Spring Hide Its Joy, com lançamento no presente ano), prolongado num gesto aparentemente infinito, de massa encorpada e texturalmente rica, que dominou toda a auralidade do Theatro Circo. As mínimas variações davam-se lentamente; houve tempo para desfiar o detalhe numa linguagem afecta ao drone, que nos arrebatou o nexo temporal. Ao terminar como começou, encerrou circularmente uma excursão por motivos de repetição.
Também nós voltamos ao início. Este festival já não é uma novidade no panorama cultural português, nem europeu, e desde a sua primeira edição muito se passou e transformou, até por sua influência. A cidade de Braga valoriza-se à sua passagem, recuperando espaços, dialogando de outras formas com os cidadãos, trazendo visitantes, fomentando cultura. Parece ter mais repercussões estéticas do que políticas, mas pode argumentar-se que tudo é político, afinal. Quanto ao estético, é-o certamente. O pequeno livrete com horário e outras informações úteis do festival anunciou logo na mensagem por parte da organização: havemos de nos ver outra vez por ano. Que assim seja — no próximo, e nos seguintes.