Reportagem. Ser pessoa trans não binária em Portugal
O mês de março é o mês da visibilidade Trans, sendo que dia 31 é o Dia Internacional da Visibilidade Trans.
Nota previa: esta reportagem está escrita com linguagem inclusiva de modo a respeitar os pronomes das pessoas entrevistadas e a vivência da não binariadade.
No momento que vimos ao mundo, uma pergunta é sempre feita “menino ou menina?”. Somos à nascença postos numa destas duas caixas que já vêm cheias de expetativas e guiões. Mas o que acontece quando crescemos e percebemos que não cabemos em nenhuma delas?
Quando era pequene, Alex (nome fictício), 24 anos, lembra-se de ter ficado supreendide quando viu as suas mamas a crescer: «Pensei “mas isto não acontecia aos meus tropas”», relembra entre risos. Companheire habitual do grupo dos rapazes, sempre preferiu as brincadeiras destes, acabava por se ver também como um rapaz. Sentia que não tinha nascido na caixa certa. Mais tarde, no entanto, percebeu que também não havia conforto na caixa do masculino. “Tinha-me que encaixar no lado feminino, e não me encaixei. Depois pensei que isso devia querer dizer que me devia encaixar no lado masculino, mas mesmo assim não parecia o lado certo, não parecia que seria isso que me estava acontecer”. Foi apenas mais tarde, após ter tido lido autores como Judith Butler, que começou a refletir sobre o sentimento de constante não encaixe e que lhe começou a dar um nome: não binaridade. Agora, com 24 anos está mergulhade no ativismo e mais segure na sua identidade de género, mas as questões ainda são muitas.
Para Francis, 18 anos, esta descoberta apenas veio mais tarde. Na escola onde andava, preparavam uma adaptação do musical “Grease”, inspirado no filme dos anos 70, década onde os papeis de género estavam mais marcados do que nunca: “Um dos números que tínhamos que ensaiar envolvia um grupo só com rapazes e um grupo só com raparigas. Disseram para eu ir para as raparigas e eu senti-me mal a fazer um papel tão estereotipicamente feminino, mas depois também não me fazia sentido ir fazer um papel que seria tão masculino, não sentia que me encaixava em nenhum dos dois“. Nesse momento, Francis começou a aperceber-se que também na sua vida não parecia conseguir encarnar fielmente o papel que lhe tinha sido dado: “Eu sempre tinha tentado ser o mais feminino possível, mas parecia uma coisa que eu não conseguia agarrar, não era uma profecia que eu conseguisse completar. Eu não me sentia verdadeiramente mulher, eu não sabia como as pessoas se identificarem como mulheres.”
“As normas do género neste momento são binárias e estão atravessadas por esta visão binária do masculino e feminino. Estas normas projetam-se como a obrigação das pessoas serem vistas de um lado e apenas num. Tudo vai ter uma designação feminino ou masculina. Mas contrário ao que se pensa, não há base genética inscrita no nosso género porque estamos a falar de relações sociais”, explica João Oliveira, psicologue social e também pessoa não binária, “Para muitas pessoas não binárias esta desconstrução de género, começa então com um sentimento de recusa, eu não quero nem ser masculino nem feminino, eu quero arranjar outras formas de pensar sobre mim. Nós, pessoas não binárias temos que reinventar as nossas codificações a cada momento, porque não há uma prescrição social que diga “uma pessoa não binária vai fazer isto”. Desse ponto de vista é uma construção muito ativa.”
Alex sempre guardou as dúvidas que tinha para si prórpie, nunca conseguindo expressar aos outro a maneira como quer ser tratade: “Uma coisa era se eu me afirmasse como pessoa transgénero, explicasse que agora deixei de ser mulher e sou um homem, isto é mais fácil de entender para as pessoas. Agora como pessoa não binária, tenho de dizer que não sou mulher e pedir para pararem de me verem como mulher, mas também tenho que pedir para não me verem como homem. As pessoas não conseguem fazer isto, vão ver-me como mulher, não conseguem percecionar-me de outra maneira.” Sente especial dificuldade a falar com a mãe, tanto sobre a sua identidade de género como sobre a sua sexualidade: “A minha mãe é muito católica, lê todos os domingos na missa, está sempre a falar dos santos, etc Eu vou estar a incomodá-la com estas minhas questões? Claro que não. A minha mãe nem percebe que eu não coma carne quanto mais esta questão”.
De forma oposta, para Francis foi através da partilha que deu resposta a muitas das suas dúvidas. Francis, na altura, andava numa escola internacional no Japão, onde ser trans não era algo que tinhas que viver nas sombras. Quando Francis começou a questionar a sua identidade, uma ou duas pessoas já se tinham assumido publicamente.”Eu tive muita sorte. Na minha escola havia uma pessoa que eu sabia que era não binária. Fui falar com elu e tentei explicar-lhe o que sentia. A pessoa ouviu-me e explicou-me termos como disforia e identidade de género, e de repente tudo passou a fazer muito mais sentido para mim“, relembra.
No entanto, não sentiu o mesmo conforto quando partilhou com os pais aquilo que tinha descoberto sobre si. Segundo Francis, a descoberta da sua identidade foi um ponto de viragem na relação com a sua família, sendo que a convivência mudou drasticamente. Descreve situações más de violência emocional com o pai, que levaram a que ainda hoje sofra de stress pós-traumático: “Houve uma saída do armário gradual, mas o meu pai reagiu sempre com masculinidade tóxica. Achava que eu não sabia o que estava a sentir e queria discutir comigo uma coisa que para mim não era discutível, porque era o que eu sentia. Dizia que tinha avaliado a minha personalidade e que sabia que era muito feminina para usar pronomes masculinos e coisas assim deste género. Isto aconteceu ao longo de semanas e a minha saúde mental estava a deteriorar se cada vezes mais”.
A mãe de Francis, por outro lado, após alguma confusão inicial, tentou apoiar no que conseguiu: “A minha mãe disse que só queria que eu fosse feliz. Ao início, não me tratou pelos pronomes masculinos, mas foi algo que passou a fazer. Passou também a tratar-me pelo nome que preferia. Têm-me também apoiado a procurar a ajuda que preciso em termos de psiquiatras e psicólogos.” No entanto, mesmo com este maior apoio pela parte da mãe, Francis acabou por ter que sair de casa e ir viver na casa do namorado: “Tenho estado a viver aqui desde novembro, porque a situação que vivia em casa era uma situação de violência emocional constante, que fez com que o meu estado mental se agravasse muito. Não era uma situação segura para eu estar e ainda estou a recuperar dos danos que isso me causou.”
“É extremamente difícil viver a vida toda a sentir que ninguém te percebe. Eu não aguento mais não falar sobre isto, mas também não aguento falar sobre isso, então eu não aguento nada”. Alex confessa que sabe que estas questões a vão assombrar para sempre, chegou tal como o Francis, a sentir depressão e ansiedade no passado: “Eu, no meu dia a dia, enquadro isto como se não fosse um tema, encaro como uma coisa invisível em qual não posso pensar muito. Claro que isso vai causar muitos danos, sentir que tens que estar em silêncio.” Encontrou força no autoconhecimento: “O meu trabalho tem sido fortalecer isto dentro de mim de forma a estar resolvida comigo. Eu, antes, não aceitava isso em mim e agora estou bastante mais segure. Eu posso não conseguir lidar com os outros, mas pelo menos já consigo estar numa posição bastante saudável em relação ao tema comigo”.
No entanto, tanto para Alex como Francis ser pessoa não binária vai para lá de um questionamento interno, também afeta a maneira como olha para o próprie corpo. Alex ainda é afetade muitas vezes pela disforia de género. Disforia de género é uma termo cunhado pela psiquiatria que nomeia, segundo a American Psychology Association, o sofrimento psicológico que resulta de uma incongruência entre o sexo atribuído no nascimento e a identidade de género, que provoca muitas vezes desconforto com o próprio corpo. Alex sente que há muitas partes do seu corpo que são automaticamente lidas como femininas para o resto do mundo e não alinham com a visão que tem de si mesme: “Sinto que, num mundo ideal, faria algumas mudanças ao meu corpo. Não seria para me aproximar do masculino, ou aproximar-me do feminino, seria só uma tentativa de me aproximar-me daquilo que eu sinto, viver se calhar o não binário de outra forma”. No entanto, sente que estas mudanças seriam uma sirene berrante que iria anunciar ao mundo aquilo que apenas mantém guardado na sua cabeça. Sente que se começasse a alterar o corpo ia ser questionade por todos que lhe são próximos, possivelmente tendo a sua identidade de género invalidada várias vezes. Por isto, para Alex fazer procedimentos médicos para alterar o corpo não é um opção.
Algo paralelo se passa com Francis que consegue identificar de que forma é que a disforia o afeta nas várias vertentes. Explica que uma pessoa pode ter disforia de género por pronomes errados, ou seja, existe uma sensação de constrangimento, uma dor intensa que é sentida quando as pessoas te tratam pelos pronomes que não consideras que alinham com o teu género. Algo que Francis sente regularmente, uma vez que tem disforia pelo feminino. Também podes ter disforia de expressão, que se relaciona com os significantes sexuais do teu corpo. “Para mim, a disforia de expressão que sinto tem muito a ver com o meu peito. Eu tenho um peito grande, e normalmente isso indica as pessoas de que quando eu nasci, o género que me deram, foi o de mulher e normalmente incita as pessoas a tratarem-me como mulher. Também tenho disforia da minha voz, porque sinto que muitas vezes a minha voz indica às outras pessoas que sou mulher e isso faz-me ficar desconfortável, esse desconforto é disforia.” Francis confessa que este é outro dos fatores que contribui significativamente para ter que tomar antidepressivos, uma vez que ainda não tem maneira de alterar o seu corpo, a dor diária da disforia contribui significativamente para a sua depressão.
Francis no futuro quer fazer uma mastectomia e a começar a tomar hormonas para engrossar a voz. Sente que isto, uma vez que o mundo exterior vai passar a ler a sua pessoa no masculino, onde se sente mais confortável, vai-lhe dar uma base para se conseguir exprimir livremente como quer, passando-se a sentir livre para brincar com o conceito de masculino e femenino, segundo elu “eu quero assumir uma forma mais andrógena, e que brinca mais com padrões de género, mas agora não é uma coisa que possa fazer porque ainda me sinto mais confortável com roupa que esconda o meu corpo.”
Em Portugal, para se ter acesso a processos de afirmação de género é necessário um diagnóstico de um psiquiatra. Isto, muitas vezes, exclui pessoas não binárias de terem acesso a qualquer procedimento, uma vez que a sua experiência de género muitas vezes está fora das diretrizes que os manuais consideram necessária para a operação. Não querem passar de uma caixa para a outra e, por isso, aos olhos da medicina, não se justifica a transição.
“A disforia de género é uma coisa que não existe”. João Oliveira enquadra a sua visão no movimento pela despatologização das entidades Trans (as identidades Trans são um termo que engloba tanto o transgénero como o não binário como expressões no espetro entre estes). Este movimento defende que devemos passar a considerar que quando alguém Trans sente desconforto com uma parte do corpo e escolhe recorrer a procedimentos para os alterar isto é “apenas o projeto de corpo da pessoa” e não devia ser visto como uma condição psicológica”. “É mesma coisa que quando uma mulher cisgénero (pessoa que cuja identidade de género corresponde ao género que lhe foi atribuído no nascimento) faz alterações estéticas, por exemplo, pôr silicone nos seios porque os querem maiores, ou tirar os pêlos. Não tem nada de doente nisto”. Afirma ainda que as descrições médicas que são feitas nos manuais da disforia e da experiência Trans foram feitos por psiquiatras extremamente transfóbicos, que tentam manter as pessoas nas normas de género e que não refletem as vivências das pessoas no espetro Trans. O movimento pela despatologização das entidades trans não nega a existência do sofrimento que muitas pessoas sentem quando o seu corpo não reflete a sua identidade género, mas afirma que a causa deste sofrimento é causado pela sociedade que vê os corpos trans como indesejados e não por uma condição psicológica inerente.
“Só a minha existência fere. As pessoas sentem-se no direito de interromper a minha vida para me questionar, quando não me conhece de lado nenhum, só porque eu me expresso de forma mais masculina”. Alex prefere o seu cabelo castanho escuro curto e prefere vestir-se com calças pretas e t-shirts largas e isto é suficiente para levar a opiniões alheias. Mais do que uma vez, ouviu comentários na rua sobre a maneira como se apresenta, mas os confrontos não acabam na rua, sendo que até na casa de banho não sente que pode existir em paz. O que para qualquer pessoa cisgénero é uma questão simples, para Alex é um problema sem solução, uma falsa escolha em que as duas opções causam transtorno. Mais uma vez, existem apenas duas caixas: “Se eu for a uma casa de banho de mulheres, vou-me sentir mal porque vão ficar a olhar para mim e a questionar-se o que se passa comigo, se for a casa de banho dos homens o mesmo e às vezes gostava que simplesmente não ficassem a olhar para mim. Chegaram a ficar à minha espera do lado de fora da porta para me dizerem que eu estava na casa de banho errada, mais que uma vez.”
Um questionário de pesquisa feito em 2015 nos Estados-Unidos, conhecido como The 2015 US Trangender Survey, chegou a conclusão que nesse ano 59% da população Trans inquirida, evitara ir a casas de banho pública, 31% evitara ter que comer ou beber na tentativa de baixar a probabilidade de ter que ir a casas de banho público e 8% afirmou ter desenvolvido uma infeção nos rins ou sistema urinário produto de ter evitado habitualmente o uso de casas de banho públicas.
João Oliveira considera que é preciso reivindicar o género como campo de democracia e isto começa nas escolas: “A escola, como sabemos é um espaço normativo onde expressões que não batem certo com a norma binária são totalmente reprimidas. É de extrema importância começar a apoiar os processos de experiência género nas suas formas diversas, o que bate certo com a nossa lei de autodeterminação do género”. A lei de autodeterminação de género foi um dos maiores marcos para as pessoas Trans em Portugal. Em 2018, pela primeira vez as pessoas Trans e não binárias foram ouvidas em audiência exigindo que se mudasse a maneira como o género era definido aos olhos da lei. O resultado desta audiência foi o decreto-lei 38/2018 que afirma que “todes temos direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género e à proteção das características sexuais de cada pessoa”. Assim, segundo a lei portuguesa, cada pessoa tem direito a escolher qual a identidade de género que melhor lhe assenta, ou seja, tem direito a construir ela própria a caixa que melhor se adequa a si e pôr lá dentro que acredita que mais combina consigo.
Para o psicólogue isto não é o suficiente para mudar a maneira como as pessoas olham para o género, binário e fechado. É também essencial demonstrar que identidade de género não binário sempre existiram nas diferentes culturas, especificamente nas culturas não ocidentais: “É pendente que se fala na História de que modo a colonização criou formas específicas de género e a impôs a várias culturas, especificamente a forma de género binária. E, além disso, conseguir contar uma história trazendo outras protagonistas, porque a história não é só composta por homens brancos cisgénero e hétero. Num certo sentido, chega a ser uma descolonização do género”. Os relatos de sociedades que fogem aos binários não são escassos. Em algumas tribos nativo-americanas, um terceiro género chamado Two Spirit (dois espíritos) é vivido por importantes membros da comunidade que tem um papel fulcral nas cerimónias tradicionais. Também na cultura Havaiana existe um terceiro género, Mahõ. Na Indonésia, certas sociedades vivem com cinco géneros defendidos. Estas são vivências que a colonização, tentou apagar, de modo a impor o seu ideal cristão do casamento heterossexual.
Francis sente que Portugal está ainda muito traumatizado pela ditadura e ainda tem muito dentro de si a ideia da família, de deus e de pátria: “Eu acho que ainda temos uma noção muito forte na nossa cultura que género é igual a sexo biológico e que sexo biológico é uma coisa natural. Especialmente por darmos género a todas as pessoas e todas as coisas, e diferenciarmos tudo por género.” O trabalho de desconstrução que teve que fazer enquanto pessoa não binária permitiu-lhe ir além desta maneira de pensar. Assim, não só saiu da caixa que fui poste quando nasceu, mas também teve que construir com as próprias mãos espaços diferentes, menos fechados, para a humanidade existir: “Ser não binárie muda a maneira como olho para as pessoas, e torna-as mais humanas. Parei de as categorizar as pessoas e as suas ações no contexto binário que normalmente usamos para humanizar. Dar um género, um sexo a alguém quando nasce é o processo que a sociedade tem de humanizar essa pessoa. Mas quando tu te livras do conceito do género e da binariadade do género, e passas a olhar para a pessoa como simplesmente uma pessoa, ficas com uma maneira muito diferente de te relacionares, e faz com que tenhamos relações mais frutíferas, mais reais.”