República Alexandrina
Imagine-se um homem em cima de uma elevação. Como subiu até lá acima, o que terá motivado o seu movimento? Não sabemos. Mas sabemos que é observado por uma multidão. No cimo do monte, segura com a mão esquerda, a base de um bastão de madeira, na direita a rotação do seu pulso desfralda a bandeira de uma república. Chama-se Alexandre e a maioria dos que o observam não sabe disso nem se interessa disso para nada. De republicano, Alexandre, até àquele momento, não tinha nada. Nunca tinha sido republicano, ou outra coisa qualquer, que lhe perguntassem se seria ou não?. Era Alexandre, como o pai antes dele, e Alexandre como o seu avô. Mas naquele dia, aquela bandeira, desfraldada com vento de feição, era a sua, a do seu batalhão e a do seu país.
As revoluções são mesmo assim, acontecem simplesmente sem grande “espanpanância” a não ser na cabeça dos seus impulsionadores originais. Planeadas por estrategas políticos, são os incautos que as realizam e, no calor da luta, fazem sua a bandeira que outros coseram. Nunca há tempo a perder e assim foi com Alexandre que, homem comum no meio de uma contenda, ouviu aquele mastro ali abandonado no chão falar com ele; Levanta-me! Faz de mim o símbolo da tua luta! Faz de mim a tua bandeira! Alexandre não sabia o que responder e por respeito não devolveu ao mastro as suas próprias dúvidas; o inesperado que foi estar ali naquele momento, o imprevisível que a situação já fazia correr e sobretudo a forma como Alexandre ali tinha chegado.
Alexandre tinha decidido voltar a casa ou, como se diz em linguagem militar, desertar. Tinha sido algo que lhe tinha aparecido com demasiada força para ser ignorado. Porque estar ali, com aquele grupo que dizia querer libertar a cultura de todo um povo, e que o obrigava, a ele, a fazer o que não queria, já bastava. Dois anos antes, tinham aparecido na sua aldeia, com um grande e vistoso veículo aparelhado com as mais poderosas colunas que já tinha visto. Delas saía um discurso hipnótico que lhes falava dos sacrifícios dos nossos avôs estarem perigados por estes novos tempos em que ninguém respeitava ninguém e sobretudo que não nos permitia sermos livres como queríamos ser; Eles acham que nos podem obrigar a esquecer a nossa cultura? A nossa cultura não será esquecida! Iremos libertar a nossa cultura! Alexandre passava mal com a doença do seu pai, e quanto mais trabalhava, mais pobre ficava; aquelas palavras fizeram-lhe crescer um novo sentimento ou, pelo menos, um sentimento há muito adiado, a esperança de um futuro melhor, porque pior do que aquele futuro ali, não poderia ser.
Foi feliz no início da recruta no Exército de Libertação Cultural. No E.L.C., todos tinham comida e dormida garantida e dele, para a sua aldeia, ainda viajava mensalmente uma pensão para os pais que lá tinha deixado. Ouviu todos os discursos motivacionais sempre de boca fechada. Estava habituado, porque antes da doença e na sua meninice, a lição número um era levar e calar. Nunca lhe bateram, nunca o trataram mal; desde que ele trabalhasse com os objectivos definidos e não hesitasse no gatilho perante o inimigo pré-definido, a vida corria-lhe bem.
Tinham sido dois bons anos, mas ali e finalmente no centro da acção, o protagonismo que lhe deu foi a saudade de casa. A mesma roupa, as mesmas palavras, as mesmas rotinas, fizeram crescer um pequeno quisto na cabeça de Alexandre e de quisto a cancro terminal foram poucas semanas. Era tempo de o extrair e, no seu caso, nem cirurgia neurológica seria precisa. Um batalhão inteiro, na direcção oposta, era tudo o que precisava para, no meio da confusão, dirigir o seu corpo ao contrário do grupo. A oportunidade surgiu e colocou-se logo no encalço da sua nova esperança, rever a sua terra e os seus pais, sabendo dos riscos, mas acautelando as consequências. Planeava encontrar uma das muitas baixas que o rodeavam e com ela trocar de insígnias e chapa de identificação. Esperava ser declarado morto num corpo alheio e a sua vida voltaria ao normal. Achava ele, antes de um inesperado mastro falante mudar tudo. Faz de mim a tua bandeira! E assim fez, Alexandre. E lá do cimo daquela elevação, de bandeira desfraldada, tornou-se o herói mais improvável da nova república. Viva a República! Viva a República!