Requiem pelo Outono
Estes são os dias em que o outrora mais banal e malvisto tema de conversação ganhou subitamente urgência e manchetes de jornais. Estes são os dias em que falar do tempo – e aqui, o tempo climático – é pretexto de reuniões, manifestações e regatas transatlânticas feitas por adolescentes imbuídas de espírito messiânico.
Eu percebo e preocupo-me dentro das minhas limitações. Mas o que mais lamento, ó leitor confidente, é o desaparecimento das estações. Hoje começam a ser uma vaga memória, vestígios de um tempo romântico que nunca mais irá voltar. E é pena, até porque eu sou feito de uma estação.
Subestimámos as estações do ano. Habituámo-nos a enterrar os dias à pressa, schopenhauerianos involuntários que decidem sem querer ir matar o instante que se segue a outro instante e acreditar que a vida é algo nesse intermédio. Caímos no erro de nos acharmos superiores ao que nos vai sobreviver, por mais aquecimento global que aturemos. Tudo se tornou, por nossa vontade, cinzento. Já ninguém fala de pessoas primaveris, estivais, outonais, invernais. Misturar a nossa rica personalidade com uma mera estação do ano tornou-se ocioso e desacreditado. O que há resume-se às férias, ao trabalho, ao regresso às aulas, ao clima desagradável. Toda a gente se esquece das intempéries da alma, da força perfeita do Verão, da melancolia outonal, da tristeza de Dezembro, da inocência de Março – e como o gostarmos ou não gostarmos disso nos transforma naquilo que somos.
Eu sou um tipo outonal e não tenho vergonha que a adjectivação possa parecer ridícula ou poética ou ambas. Talvez por ter nascido no inicio de Outubro renuncio à extrema alegria de Agosto. Apavoram-me esses dias que parecem, como escreveu Larkin, «emblems of perfect happiness». Prefiro, para não perder esta ajuda e arriscar o meu pretensiosismo, esperar por um «Autumn more appropriate».
E rejubilo quando ele se prenuncia, como é o caso do mês de Setembro. Não se trata de uma questão meteorológica, note-se; trata-se de reencontrar o que andava perdido e me fazia falta. Tempo para pensar, um tempo de regeneração e recomeço.
Mesmo que este mês oferecesse, para gáudio de muitos, temperaturas médias diárias de 30ºC, seria sempre o começo de Outono. A esperança em que não acredito reaparece ténue, com tudo o que pode significar: amor, paz, tempo. Setembro e o Outono são recomeços de mim. E sei que há muitos como eu, que o confessam em privado, quase a medo, vivendo na clandestinidade sob o entulho do quotidiano.
De forma que ando perdido, procurando sinais que sempre me foram faróis. Não os encontro e como sempre recorro à literatura. Lembro-me de parte de um poema de Robert Frost, Nothing Gold Can Stay, que nos fala da efemeridade da nossa passagem: “Then leaf subsides to leaf./So Eden sank to grief,/So dawn goes down to day./Nothing gold can stay.” É muito provável que o Outono tenha emigrado para um verso.
Esta crónica foi publicada originalmente no jornal Hoje Macau, tendo sido aqui reproduzida com a devida autorização.