Respirar debaixo de água
Após um ano duríssimo de teste à sobrevivência e à sanidade mental, marcado pela desprotecção do sector por um Ministério com uma visão jurássica da arte enquanto recreio aristocrático, o sector da cultura em geral e da música em particular começa por fim a ver água no fundo do poço. O recomeço de diversas programações, a replicagem de eventos-teste com bons resultados no exterior, a aceleração do processo de vacinação, a descida gradual do número de casos de COVID-19 e o horizonte de imunidade do grupo mais cedo do que previsto são pelo menos notícias animadoras, que ainda não chegam para encher o cântaro, mas devolvem alguma esperança.
Para já, o reinício do circuito está, na grande maioria dos casos, dependente de dotações públicas. Para os promotores privados, trabalhar com lotações restritas não é rentável. Quem conhece os bastidores de um concerto, sabe que a estrutura de custos está muito para além do cachê. Produção, técnicos ou segurança são agentes necessários para pôr de pé um espectáculo com as devidas exigências.
Foram muitos meses de sede, fome e angústia. Com muitas incertezas e poucas respostas. Perderam-se vidas, sonhos e ilusões. Salas, profissionais e instrumentais. Houve projectos que nunca saíram da gaveta. Alguns poderão ser recuperados, outros expiraram o prazo de validade. Houve quem não resistisse à tempestade e sucumbisse. O regresso ao normal é um mito, quando muito haverá uma nova normalidade que, perante todas as interrogações, ainda está longe de ser definitiva.
O sector precisa de trabalhar para poder sobreviver, assim como necessita de se exprimir. Antes de ser um negócio, a arte é uma urgência de comunicar, mas um sector é tão ou mais saudável quanto a sua profissionalização. E as pessoas precisam de se emocionar para se sentirem vivas. É uma troca. Dar e receber pelo direito a sonhar. Nunca esse reencontro se pareceu tanto com a imagem de um abraço depois de uma temporada no exílio sem luz nem calor humano.
Perdeu-se muito mas também há conquistas a assinalar. O Circuito, promovido por algumas das salas lisboetas mais importantes, uniu o sector num momento essencial de aproximação e conciliação. Os agentes perceberam que se havia momento em que o todo era mais importante que a parte, era este. Nos últimos anos, a oferta cresceu exponencialmente, mas quase sempre dependente de esforços individuais e não de um pensamento colectivo consertado. Parecendo que não, é um passo simbólico num sector muitas vezes refém de bolhas particulares. É uma pena que o Circuito não se tenha alastrado ao Porto, apesar das tentativas.
Para quem está agora a começar, vai ser mais difícil atirar a primeira pedra. Promotores e salas vão ter menos margem para arriscar depois de um ano de perdas e sacrifícios. As plataformas digitais permitem construir comunidades sem nunca as olhar nos olhos, mas são um palco à parte. As redes sociais são vitais para comunicar mas não ensinam a cair do estrado. As tábuas do palco são essenciais para aprender a andar e pôr de pé uma obra, quando a intenção é correr a maratona e não os cem metros.
Por outro lado, é inevitável a valorização da música portuguesa com identidade, isto é, da cada vez mais intensa produção que não se contenta em ser uma réplica dos Radiohead ou dos Pearl Jam, de Londres ou de Los Angeles, mas tem como intenção deixar um testemunho pessoal. Perante um verão sem escalas internacionais, o roteiro terá inevitavelmente de ser feito à base de voos domésticos, mas o que não falta neste momento são viagens em primeira classe.
Da música ao teatro, a oferta nunca foi tanta e tão variada. E há públicos. Esta semana, um relatório da Associação Fonográfica Portuguesa (AFP) e da Associação de Gestão de Direitos de Produtores Fonográficos (AUDIOGEST) apresenta um crescimento de 4% das receitas de música gravada e dos direitos de artistas e produtores musicais em Portugal para um total de 37 milhões de euros.
E basta ver que na tabela dos cinco mais ouvidos em streaming – de longe o formato mais consumido – todos têm origem local para se perceber que há uma mudança no paradigma da relação do país com a sua música. Nem o digital explica tudo, nem o mercado é o único sintoma, mas são peças importantes deste puzzle.
O mais importante está no meio. Cada vez mais, a música portuguesa é uma expressão da portugalidade, nas suas mais variadas formas, leituras, interpretações e divagações. E isso, naturalmente, aproxima a boca do coração. Por isso, aqueles que berram por ter de passar mais duas canções portuguesas por hora nos seus canais de rádio, enquanto sonham com o regresso aos dias dos U2 e dos Pink Floyd depois das notícias do trânsito no IC19, ou não vivem neste país ou já nem ouvem música.