‘Resxistência’, ou como uma velha ideia pode alumiar

Em Existencialismo, Kevin Aho apresenta-nos de forma clara e didática alguns dos principais temas da corrente filosófica que dá nome ao livro. Independentemente da imprecisão que rotular determinados pensadores com este termo possa constituir, a verdade é que parece que pode ser traçada uma linha direta desde o filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard até aos existencialistas franceses do século XX. Apesar de muitas vezes ser tida como uma corrente menor, talvez o primado dado por estes autores à situação humana vivida possa ser uma centelha de luz nos tempos difíceis em que nos encontramos e, por isso, de valiosa auscultação.
“Antes de podermos ser seja o que for existimos, ou seja, não somos primeiramente determinados, mas, pelo contrário, vamo-nos fazendo a nós mesmos através das ações que escolhemos tomar ao longo das nossas vidas.”
“A Existência precede a Essência” é talvez uma das ideias mais famosas do mais popular de entre os chamados existencialistas, o francês Jean-Paul Sartre (um dos poucos que aceitou este rótulo). Muito simplesmente, o que esta ideia fez foi contestar a conceção de que temos uma espécie de núcleo prévio, a essência, a partir do qual a existência se desenvolve ou do qual ela é um reflexo. Nesta inversão, o que se afirma é que antes de podermos ser seja o que for existimos, ou seja, não somos primeiramente determinados, mas, pelo contrário, vamo-nos fazendo a nós mesmos através das ações que escolhemos tomar ao longo das nossas vidas. Esta precedência permite que nos vejamos como um ser que se pode projetar num futuro, abrindo a possibilidade de concretização de uma vida autêntica. Que dizer dos nossos feeds? Se nos dedicarmos brevemente ao ato de doomscrolling, talvez esta ideia pareça entrar em confusão. O que vemos é um determinado modo de vida que nos é imposto através de um algoritmo meticulosamente desenhado que nada mais nos dá do que a repetição do mesmo, onde nos vemos empenhados numa atualização constante do igual, indo atrás de “novidades” replicadas. Talvez não seja descabido interpretar esta experiência como uma imposição de um certo modo de existência que, precisamente por isso, por se cristalizar numa essência reproduzida e que nos entra casa adentro, anula a sentença com que se inaugurou o parágrafo.
“Tendo o digital penetrado de tal forma nas nossas vidas, apesar de apontadas as suas virtudes enquanto “aldeia global”, não se pode deixar de notar que a abertura a esta nova forma de “socialização” parece ter promovido um maior fechamento dos indivíduos, o que não poderá deixar de ter consequências ao nível da forma como habitamos o quotidiano.”
O esbatimento da fronteira entre o mundo digital e o mundo material (ainda faz sentido falar nestes termos?) tem também outra consequência. Tendo o digital penetrado de tal forma nas nossas vidas, apesar de apontadas as suas virtudes enquanto “aldeia global”, não se pode deixar de notar que a abertura a esta nova forma de “socialização” parece ter promovido um maior fechamento dos indivíduos, o que não poderá deixar de ter consequências ao nível da forma como habitamos o quotidiano. Uma delas é o esquecimento de que somos sempre ser-com, isto é, encontramo-nos no mundo sempre com outras pessoas, ou seja, existimos numa situação histórica que é sempre partilhada, situação essa que tem lugar num mundo que já lá estava anteriormente. Identificar isto exige que mudemos de disposição, adotando uma atitude de reconhecimento perante os outros, por um lado, ou seja, de confirmação da sua própria existência, e perante o meio, por outro, que desemboque numa relação assente no cuidado e na restituição do estatuto pré-reflexivo e, por isso, pré-instrumentalizável do mundo.
Proponho que, em virtude das existências gasosas e dos lugares mal habitados, talvez possamos encontrar no ímpeto intelectual do existencialismo uma espécie de cura. Evidentemente não há panaceias, mas talvez para nos recuperarmos enquanto existentes, enquanto sujeitos que foram lançados num mesmo mundo que, por isso, é partilhado, seja útil recuperar a Existência no seu pleno sentido. Talvez reafirmar a existência seja uma forma concreta de resistir – Resxistir.