“Retrato da Rapariga em Chamas”, de Céline Sciamma: a reciprocidade do olhar
A francesa Céline Sciamma tem construído a sua carreira como cineasta pelos meandros do drama coming of age em versão feminina. “Naissance des Pieuvres” (2007), “Tomboy” (2011) ou “Bande des Filles” (2014), lidam, de diferentes formas, com a perda de inocência e descoberta da sexualidade da mulher. Se os filmes anteriores tinham uma abordagem mais realista e contemporânea, “Retrato da Rapariga em Chamas”, ou em francês “Portrait de la Jeune Fille en Feu”, marca um ponto de viragem na sua obra. Um drama de época com elementos fantásticos, onde o florescimento e emancipação dos seus personagens femininos continua presente.
O filme decorre numa ilha isolada na Bretanha, no final do século XVIII. Marianne (Noémie Merlant) é contratada para pintar o retrato de casamento da jovem Héloïse (Adèle Haenel), única forma do distante noivo conhecer a sua aparência. A relutância de Héloïse em casar impõe que Marianne chegue sob o disfarce de sua dama de companhia, desempenhando tal papel durante o dia e pintando sigilosamente no decorrer da noite.
Este cenário convida a pintora a demorar-se na observação das feições de Héloïse, um esforço na tentativa de discretamente captar todos os detalhes da sua imagem na memória. O olhar mais atento vai obtendo reciprocidade, construindo-se, progressivamente, uma tensão entre a curiosidade e a atração. Tal ambiguidade é reforçada pela cineasta, que vai sobrepondo os rostos das protagonistas, criando um jogo entre o ver e ser visto.
Sciamma vai desenhando o seu filme com acentuados contrastes. A água (mar) nos planos diurnos contra o fogo nos noturnos, o vermelho e o verde dos vestidos, o loiro e o negro dos cabelos. Autênticos quadros surgem projetados na tela, habitados pelas personagens principais. O enquadramento procura protegê-las da patriarcal presença masculina, propositadamente relegada para o fora-de-campo do filme.
“Portrait de la Jeune Fille en Feu” partilha com “O Estranho Caso de Angélica” (2010), de Manoel de Oliveira, e “Le Secret de la Chambre Noire” (2016), de Kiyoshi Kurosawa, a obsessão com as propriedades transcendentais da imagem. O retrato, fotográfico ou pintado, garante a permanência material de quem fisicamente já não se encontra entre nós. Por outro lado, a linguagem cinematográfica permite que a fronteira entre o material e o imaterial se dissipe, como o comprovam as aparições de Héloïse, Angélica ou Marie, manifestações incorpóreas e oníricas da memória dos protagonistas. No caso de Marianne, as visões de Héloïse constituem-se como um prenúncio da sua inevitável separação, imagem assombrada do seu espectral destino.
O retrato de Héloïse é pintado, queimado e repintado por Marianne, insatisfeita com o resultado final. Deixou de ser um simples trabalho, é a súmula do amor que floresceu entre artista e modelo, uma tentativa de imortalizar o sentimento perante a inescapável efemeridade da chama que as une. Sciamma faz o mesmo com o filme, garantindo o perpetuar das suas imagens na memória do espectador, através do milagre da encenação.