Reunião de condomínimo
Adoro começar o fim-de-semana a levantar-me da cama bem cedo. Se o motivo é uma reunião de condomínio, melhor ainda. Sobretudo o que gosto mesmo é de iniciar uma crónica com ironia.
Aquele sábado não era um sábado qualquer: era o dia da reunião de condóminos. E não se tratava de uma reunião de condóminos qualquer: era a primeira.
Estou certo que grande parte dos 3 leitores desta crónica já teve a oportunidade de presenciar um encontro deste tipo. No entanto, poder atender a uma primeira reunião é um privilégio reservado apenas àqueles que muito pecaram nesta ou noutra vida, como deve ter sido o meu caso.
Habitualmente estes fóruns servem para expor situações que se encontram carentes de três coisas: resolução, decisão e/ou canta-joão. Já por si são chatas. Chatas do verbo horrível. Se lhe juntarmos a panóplia de coisas e coisinhas que têm que ficar decididas antes da constituição do condomínio, temos tudo para querer estar antes numa daquelas procissões de autoflagelo da Semana Santa, nas Filipinas.
Pois bem, ali me encontrava eu com os vizinhos que mal conheço, em frente a Alberto Conraria: um senhor que gere uma empresa que administra condomínios compostos por condóminos que, por sua vez, contratam uma empresa que administra condomínios gerida por este senhor. A personificação de Ouroboros, a serpente infernal que come a própria cauda — que era mais ou menos como eu me sentia naquele momento.
Conraria estava bem preparado. Após as apresentações, discursou num tom de irrepreensível monotonia que podia muito bem servir de banda sonora a uma eutanásia suave, caso fosse legal um paciente pedir ao seu médico uma morte assistida por tédio.
— Meus senhores, tenho o prazer de estar aqui reunido com “vosselências” no propósito de apresentar os serviços da “Sociedade Ocidental de Mediadores Especialistas Responsáveis por Diligências Administrativas, Limitada” da qual sou o principal sócio, sendo também único gerente, com a finalidade de apresentar a “vosselências” uma proposta de serviços para administrar o vosso condomínio.
Escondi um bocejo quando me estiquei para alcançar a proposta que distribuiu e que discriminava uma série de itens como Abertura de Condomínio, Despesas Administrativas, Limpeza, Segurança ou Outros.
A única coisa que me fez despertar um pouco foi quando me apercebi de um tique curioso. Quando dizia algumas palavras, demasiadas, tinha o hábito de fazer um gesto simbolizando aspas bastante peculiar: de cabeça encolhida entre os ombros, esticava os antebraços para cima enquanto mexia todos os dedos da mão. Uma mistura de imitação de pelicano marreco de membros superiores estáticos, com um anão corcunda que toca um piano alto.
— Sabem que, neste tipo de prédio, diz-me a minha “experiência pessoal”, por vezes acontece um certo tipo de “problemas”, as pessoas não têm tempo, com as suas vidas “ocupadas” e é aí que nós entramos, com a nossa “expertice” e o nosso “nau au” — nem sempre as aspas eram mal metidas, em abono da verdade.
— Digo-lhe já que, se é esta a vossa proposta, estou fora! — Jorge Cominhos, vizinho do quarto andar que eu acabara de conhecer, já tinha lido a proposta de cima a baixo, ainda eu estava vidrado no abanar dos dedos do orador. Jorge pertencia a uma classe de pessoas que eu chamaria de Picuinhas Exigentes.
(Picuinhas exigentes: Apenas toleráveis na seguinte situação: quando estão do nosso lado. Por exemplo, se num restaurante pedirem o mesmo prato que nós, fazendo-o com tal detalhe que só temos que pedir “igual” (exemplo: “cozido à portuguesa sem chispe e sem nabo, alimentos que têm a particularidade de encher o prato, de rácio chicha/espaço ocupado diminuto, subtraindo área disponível para enchidos gostosos e afins”); quando exigem mais rigor num qualquer atendimento ao público do qual também somos vítimas (“a fila única é para respeitar” ou “menina stripper, por obséquio mostre seus seios sem mais demoras que estivemos todos 2 horas à espera de entrada e o autocarro do noivo parte entretanto”); na organização de multidões descontroladas (“a ordem é a seguinte — primeiro o amigo Leonardo que tem uma crónica para acabar, depois mulheres e crianças, cada bote só pode levar 10 pessoas no máximo, os outros ficam comigo no navio naufragado, que eu vou orientando aqui as coisas”) ou, claro está, quando pertencem ao mesmo grupo de indivíduos que procura pagar o mínimo pelo serviço que está prestes a contratar).
— Tenho vários apartamentos e em nenhum suporto este valor — continuou Jorge — Tenho propriedades no Algarve e também em Odivelas. Não sei qual a ideia dos meus vizinhos, mas perante esta proposta, estou fora.
Perante a reação enérgica e adversa, Conraria, com uma amabilidade que já não se usa, recuou:
— Meu caro, o que vos apresentei é a “chamada” proposta inicial. Um início de conversa, como se costuma “dizer”. A previsão orçamental foi feita com base num “modelo” que utilizamos com vários prédios na região.
— Compreendo, Sr. Conraria, mas estou já aqui a ver que preveem gastar 1.200€ em conservação e manutenção. Não sei o que estão a contabilizar neste item, mas acho exagerado.
— Bom, isso é um valor previsto para “pequenas manutenções”. Por exemplo, funde-se uma lâmpada…
— Olhe, no meu caso, sempre que há luzes fundidas no meu piso, eu próprio substituo. Se toda a gente se responsabilizar pelo seu piso, podemos retirar este montante do orçamento. E este valor de limpeza? Seiscentos euros?
— “Cinquenta” por mês. É o que cobra a empresa…
— Senhor Conraria, vocês não conhecem aí ninguém que faça isso…a título…particular? — Jorge Cominhos tentou buscar nos meus olhos cabisbaixos alguma empatia.
— Sim, pode ser eventualmente uma “solução”.
— Menos seiscentos paus. — Cominhos triunfava.
— Temos o “problema” do seguro. Ou melhor, da falta “dele”.
Foi mais ou menos por aqui que desliguei. Imaginei-me fora do meu corpo, em todo e qualquer lugar que não aquele. Pensei no carro que deixei mal estacionado, no almoço que me parecia longínquo, de como vinha verificando que no pós-pandemia as pessoas tinham ficado completamente idiotas, na guerra, na seca, na fome em África e pior, na minha, e em todas as decisões que tomei na vida e que me levaram até àquela sessão absurda, interminável, mortal.
Uma ligeira discussão trouxe-me de volta. Dei conta que o Picuinhas Exigente tinha debatido um a um todos os pontos da Previsão Orçamental, e que a mensalidade do condomínio havia sido de tal forma descontada que já não pagava qualquer serviço. E também que nesse momento Cominhos se apercebia que, apesar de agora suportarmos uma mensalidade de 10€ em vez dos iniciais 35€, calhava a todos lavar as escadas uma vez por mês, cada um era responsável por pequenas reparações no seu piso, “alguém” ficaria responsável por negociar os seguros obrigatórios, a água seria liquidada pelo homem invisível, a segurança estaria ao encargo do Batman e o prédio seria transformado no Bairro do Amor, do Jorge Palma.
— Vamos lá rever isto desde o início — o Picuinhas Exigente dava um passo atrás, ciente de que mais vale uma picuinhice na mão que duas exigências a voar. Eu estava demasiado cansado para boas metáforas.
Conraria, por seu lado, compreendia agora que há “serviços” que mais vale “desestimar”.
— Estamos aqui para chegar a um consenso, se possível. Caso contrário, amigos como “dantes”.
Chegou-se a uma concordância que não podia ser mais portuguesa. Por uma mensalidade de 20€ ficámos com uma acessível e profissional administração de condomínio. Que pouco faz e pouco pode fazer. Uns pagaram logo, outros nem por isso. Para janeiro ficou apalavrada outra “reunião”.
Foi apenas quando me levantei que reparei no logotipo que a empresa havia adotado — um pequeno prédio do jogo Monopólio. Era este o símbolo que se destacava na imagem da empresa, mesmo por debaixo da sigla.
Resta-me concluir que este evento não foi uma perda de tempo apenas para mim e para os vizinhos. Foi também para todos os que leram este (encolho a cabeça entre os ombros e estico os antebraços para cima abanando as falangetas) “belíssimo texto”.
Já é tarde e ainda tenho que ir à rua. Há uma luz fundida no meu piso, espero que alguém a substitua. Não se vê nada.