Revista The New Yorker expôs miséria da ditadura portuguesa nos anos 1950
O contraste entre a pobreza de muitos e a riqueza de poucos domina a “Carta de Portugal” da escritora e jornalista norte-americana Mary McCarthy, resultado da sua visita ao país, publicada na revista The New Yorker, em 1955.
Portugal, onde o trabalho era “a mercadoria mais barata”, a miséria comparável “às piores páginas de Victor Hugo”, com os ricos “cada vez mais ricos” e “os pobres cada vez mais pobres”, e onde “não ver” fazia “parte do idílio” da ditadura, era o país de Salazar, “um homem que só fez o melhor pelo seu povo”, como a escritora ouviu dizer à chegada a Lisboa, onde entrou pelo Tejo, no início de janeiro de 1954.
A autora de “O Grupo”, que durante anos escreveu para publicações como a Harper’s Magazine, The New Republic e a Partisan Review, revista que lhe confiou a cobertura da guerra do Vietname, esteve em Portugal até meados de abril desse ano, viajando de norte a sul, de Lisboa, ao Algarve e ao Porto.
O choque entre realidade e propaganda ficou desde logo marcado nos primeiros parágrafos do longo texto “Letter from Portugal”, publicado no número de 28 de janeiro a 05 de fevereiro de 1955 da New Yorker, três anos depois do aparecimento do livro “Férias com Salazar”, da francesa Christine Garnier, projeto do antigo Secretariado Nacional de Propaganda (SNP).
O texto de Mary McCarthy é o oposto do retrato “amaciado e humanizado” do ditador, feito pela colunista do Le Figaro, como o definiu o historiador Fernando Rosas, no prefácio a uma edição recente do livro (Parceria A.M. Pereira, 2002).
McCarthy é descritiva, objetiva na reportagem e também na ficção, como a crítica norte-americana sempre sublinhou, desde a sua estreia nas letras, em 1942. A revista The Nation não hesitou em falar da “implacável honestidade” da obra de Mary McCarthy, e o escritor Norman Mailer designou-a “a primeira dama das letras” americanas, na New York Review of Books.
O retrato que Mary McCarthy fez de Portugal prende-se à realidade das ruas, das pessoas com quem falou, à miséria que via para lá das lojas do Chiado, da Baixa e da Avenida da Liberdade, em Lisboa, aos pedintes, às barracas em redor da capital, às casas sem condições nos bairros antigos, aos “fatos terrivelmente coçados e remendados” que toda a gente parecia usar, aos estendais cheios de roupa “de espantalho”, e ao modo como a realidade divergia do discurso oficial.
Mary McCarthy confrontou aquele que definiu como “homem da propaganda”, e teve como resposta: “Onde viu pessoas pobres?”
A escritora encontrou-as por todo o lado, “na imagem viva da pobreza” de Alfama, no horror da “miséria cinzenta” do Porto, nas crianças seminuas e nas mulheres embrulhadas em trapos, num inverno rigoroso.
“Essas mulheres são muito poupadas”, respondeu-lhe “o homem da propaganda”. E as pessoas de Alfama eram “de uma raça especial, […] nunca viveriam respeitavelmente se lhes dessem essa oportunidade.”
Mary McCarthy não identificou “o homem da propaganda”, mas o texto aponta para os responsáveis máximos do Secretariado Nacional de Informação (SNI), sucessor do SNP. À data, o SNI era dirigido por José Manuel da Costa, ex-chefe de gabinete de Salazar, e tinha em Ramiro Valadão, futuro presidente da futura RTP, o chefe dos serviços de informação.
A escritora sabia que o regime era “semi-totalitário”, que havia censura (viu “Os sete pecados mortais” no cinema reduzidos a quatro), que havia polícia política, sabia que a greve era proibida, que os direitos cívicos eram mínimos, que as mulheres ficavam em casa e as eleições tinham “um sabor soviético”.
Na New Yorker, identificou apenas opositores fora de perigo imediato, como o professor universitário Francisco Cunha Leal, antigo ministro da I República, que se fixara em Espanha, e o sociólogo António Sérgio, “um velho encantador, com uma imagem de Kant no seu escritório”, para quem “era um aborrecimento que o governo já não se preocupasse em prendê-lo, limitando-se a perseguir os seus associados das maneiras mais mesquinhas.”
“Em Portugal, o nome de Salazar” parecia pairar sobre todas as coisas, escreveu Mary McCarthy na conclusão do artigo da New Yorker: “Tal como o de Deus, é pronunciado de um modo especial […], como se a voz envergasse um fato de domingo. Existem dúzias de histórias sobre ele, ilustrando os seus hábitos frugais, a sua relutância em partilhar o poder. Todas parecem falsas como as que se contavam sobre Estaline.”