Roda livre
Se há coisa que invejo em criatura alheia é o jeito para tocar um instrumento ou jogar à bola. Eu sempre fui péssimo em tudo quanto implica destreza corporal. É uma espécie de versão caricatural do locked-in syndrome: sou capaz de pensar numa série de escalas no braço da guitarra ou em fintas que poderia fazer mas o meu corpo, ao invés de coadjuvar, conferindo realidade ao que existia somente em potência, não acompanha de todo o que se passa no andar de cima. O cérebro, qual capitão experimentado, exaspera na condução daquele pelotão de recrutas ciclicamente atrapalhando-se a si mesmos. A única coisa vagamente física em que alguma vez fui bom foram os flippers, e mesmo que tivesse idade e determinação para prosseguir uma carreira de jogador profissional, não estou a ver comité olímpico a incluir a modalidade nas olimpíadas num futuro próximo – ou menos muito distante, na verdade.
Como quase tudo, de fora parece relativamente simples: um sujeito coloca a guitarra no colo e traduz fisicamente uma interioridade onde sensibilidade e técnica se encontram de modo mais ou menos perfeito. Eu tive aulas de guitarra. Tive aulas de karaté. De ninjútsu. De basquete. O meu sobrinho mais velho tentou ensinar-me a jogar setas. A maior parte das pessoas que vejo embrenhadas numa actividade física qualquer parecem de lá retirar, no mínimo, a moderada satisfação que decorre da produção de endorfinas. Eu começo a correr e passado escassos minutos os órgãos do meu corpo duplicaram misteriosamente de peso, tenho sede, calor, vontade de fazer xixi, frio, dores um pouco por todo o lado e um medo terrível de morrer de calções. Podia ser disléxico de pés e mãos mas robusto como um pónei. Mas não. Nada disso. Tudo quanto é essencial para a prática do desporto eu tenho-o em negativo.
O mesmo acontece na música, com uma agravante: tenho bom ouvido, pelo que sou extremamente sensível a minha própria incapacidade técnica. Podia ser um daqueles concorrentes dos programas de talentos, harmonicamente surdos, cujos progenitores incensam as qualidades musicais sob o verniz resistente do estoicismo parental, mas nem essa abençoada ignorância me foi concedida. Não é que uma pessoa tenha de ser boa ou razoável em tudo, mas parece-me meio injusto, pelo menos do ponto de vista da distribuição divina ou genética de competências, que um sujeito não o seja em nada.
Quando comecei a andar de bicicleta usavam-se aquelas rodinhas de apoio lateral. Os meus amigos, mais expeditos fisicamente do que eu, faziam gala de andarem somente com duas rodas.
Eu tentava acompanhá-los nas deambulações que faziam pela cidade mas raramente conseguia percorrer duzentos metros sem os perder de vista. O que as rodinhas de apoio acrescentam ao equilíbrio retiram à capacidade de acelerar.
O meu pai insistia que eu estava preparado. Eu tinha a certeza de que ia ficar sem dentes da frente se lhe pedisse para remover as rodas de apoio. Achando-me mais do que capaz e frustrado com o meu aparentemente incompreensível medo, o meu pai desapertou as porcas que sustinham as rodas quase até ao fim. Assim, quando fui andar de bicicleta, uma delas caiu passado pouco tempo e a outra logo a seguir. Sem me dar conta, estava a andar sem rodinhas. O meu pai, do passeio, aplaudia. Não me tendo apercebido ainda do que estava a fazer, achei que ele estava a gozar comigo. Fui ter com ele e perguntei-lhe pela piada da coisa. Ele ria-se. Deu-me os parabéns.
Foi a minha maior proeza desportiva. Em tudo mais não tenho encontrado as rodinhas para as desatarraxar.
Esta crónica foi publicada originalmente no jornal Hoje Macau, tendo sido aqui reproduzida com a devida autorização.