“Roe v. Wade”: como se negligenciou um dos direitos mais básicos que a mulher possui?
Um olhar ao sistema político e judicial dos EUA e a sua fragilidade de garantia de proteção dos direitos humanos.
No dia 24 de Junho de 2022, chegou-se ao fim de um dos casos mais falado nos últimos tempos no Supremo Tribunal de Justiça dos EUA. O caso Roe v. Wade, acaba de ser revertido, levando à discricionariedade de cada Estado, definir um dos direitos mais essenciais das mulheres: o direito a ter acesso ao aborto sem a sua penalização. Esta proteção foi primeiramente concedida em 1970, permitindo a legalização nacional da interrupção da gravidez. Acontece que, em 52 anos foi possível dar uma volta ao tempo, e o tempo conseguiu voltar atrás em vez de progredir. A fraqueza do futuro, transcreve-se precisamente na instabilidade de perceber se as decisões políticas e judiciais que se tomam, seguem um caminho diferente, ou ainda estão presas a correntes do passado. O tão recente passado, permitiu a que muitas mulheres conseguissem conservar de maneira segura a sua privacidade sexual, sendo possível, a interrupção durante o 1.º trimestre da gravidez.
Para além disso, permitiu a emancipação da mulher no que toca às escolhas sobre o seu próprio corpo, algo que a ver de muitos, causa uma certa confusão, ou até uma espécie de urticária. A ideia de uma mulher, possuir controlo sobre a sua vida, e que as suas escolhas tenham de ter um escrutínio público, acaba por ser contraproducente com as vanguardas que o século XXI procura demonstrar.
Pelo contrário, com esta decisão não estaremos apenas a ficcionar como a tornar real a morte de mulheres que não podem aceder a cuidados médicos, devido à proibição de algo que concerne a sua esfera mais íntima.
Pior que isso, será a ideia absolutamente conservadora que cada Estado poderá proibir o aborto em situações chocantes, como a de violação e de doença grave. Estas situações, podendo ser situações recorrentes, peculiares e flagrantes na vida de uma mulher, ao estarem ao dispor do legislador apagam em todos os sentidos, a liberdade que a mulher dispõe psicologicamente para resolver os aspetos da sua vida.
Com isto, pretendo estabelecer uma ligação sobre a influência do sistema anglo-saxónico nos direitos das mulheres, e a maneira como eles facilmente conseguem ser revogados. O sistema anglo-saxónico trata-se de um modelo complexo de justiça que muito acaba por diferir do sistema adotado pela maior parte dos sistemas europeus. O sistema “Common Law” tem as suas raízes na Grã Bretanha, em que a lei é declarada pelos juízes e derivada dos costumes. Relativamente ao sistema aplicado aos Estados Unidos, não existem muitas diferenças, as decisões judiciais acabam por ser a base do sistema jurídico, originando-se o famoso princípio do precedente. No entanto, importa não se desligar de outras fontes que se encontram a nível superior, tais como a Constituição, que embora se encontrem em menor número são fundamentais e constituintes de todos os princípios pelos quais o povo americano se rege. Posteriormente, num degrau abaixo, encontram-se os estatutos e regulamentos administrativos. Assim, em última instância, tem-se na base, o que é descrito pelo direito comum. Contudo, existe uma complexidade que advém de existirem decisões judiciais feitas a nível federal e outras a nível estatal. O que define este sistema, é o requisito de que o tribunal a nível estatal acaba por seguir as decisões de outras ordens hierárquicas dentro da mesma jurisdição, tornando este sistema de um certo modo previsível, visto que cada decisão tem efeitos vinculativos.
O sistema judicial nos Estados Unidos, é composto por uma estrutura de três níveis: em que os Tribunais Distritais são os tribunais de primeira instância; o Tribunal de Apelações dos Estados Unidos, é o intermediário dos recursos; e, por fim, o Supremo Tribunal dos Estados Unidos é o árbitro final da lei. A lei comum acaba por não ter base estatutária, na medida em que os juízes estabelecem o direito comum por decisões judiciais de casos concretos que posteriormente vinculam decisões futuras de tribunais inferiores da mesma jurisdição.
A meu ver, o sistema judicial americano, trata-se de um verdadeiro espetáculo que tem como grande protagonista o negócio da “advocacia” e que o seu principal propósito acaba por ser a alteração do precedente sempre que haja argumentos e sustentabilidade para tal. Assim, o sistema jurídico americano é contraditório e inseguro, concentra-se na premissa de que uma disputa real e viva, que envolve partes com interesse genuíno no seu resultado, acaba por permitir um intenso debate jurídico em argumentação dos factos que são publicamente apresentados. Porventura, os tribunais não devem ter o poder de emitir decisões a menos que sejam em resposta a uma controvérsia causada pelo debate jurídico. Contudo, a insegurança do sistema judicial, não vem sozinha, pelo contrário vem acompanhada, importa analisar o sistema de governo americano e perceber a sua influência no sistema judicial.
Pode-se dizer, que a subida e a ascendência do populismo nos Estados Unidos, teve um papel significante, e se não agravante para que uma decisão desta responsabilidade pessoal, chegasse ao Supremo Tribunal. Como sabemos, a justiça irá estar sempre interligada com a política. O mais básico será dizer que de 4 em 4 anos, os olhos do mundo estão postos no continente norte-americano, na medida em que o povo americano é convidado a votar para um dos momentos mais definidores da sua democracia. A ilusão que é constantemente dada, é que basta os americanos votarem nas eleições presidenciais que todos os seus ideais serão concretizados, mas isto não pode estar mais longe da verdade, existe um longo percurso e um sistema político complexo que acaba por balançar a organização de poderes do sistema presidencial.
Uma das soluções encontradas pelo presidencialismo, foi precisamente no seu recrutamento de juízes. A nomeação de um juiz para o Supremo Tribunal de Justiça, é uma responsabilidade exclusiva do Presidente dos Estados Unidos. Contudo, esta nomeação por muito renome que tenha, está vinculada a aprovação pelo Senado. Mas então, quem é que se encontra no Senado? O Senado é uma das câmaras do congresso dos EUA, o mesmo permite a cada estado ser representado por dois membros, este mandato acaba por estender o mandato do Presidente, prolongando-se para 6 anos. Este órgão é de extrema importância para balancear e controlar as ações do Presidente. No entanto, estas eleições ocorrem a cada dois anos para a escolha de aproximadamente, um terço das posições do senado, são chamadas as famosas “midterms”, que são usualmente disputadas em Novembro, e por fortuno do povo americano acontecem já este ano. Assim, cada senador é eleito pela população eleitoral dos seus estados.
Atualmente, encontra-se em maioria, o partido republicano face ao partido democrata, o que permite afirmar que está-se perante um senado mais conservador do que progressista. Embora isto permita uma maior representação, independência e separação de poderes, estas eleições para o Senado acabam por ser desprezadas face à importância que têm relativamente às eleições presidenciais. Ou seja, por muito que um presidente se esforce para promover mudanças na justiça, como é o que pretende o atual Presidente Joe Biden com a nomeação da primeira juíza negra no Supremo Tribunal de Justiça, apenas se conseguirá uma vitória para Biden, se o Senado por sua vez tiver uma maioria democrata, caso contrário será inevitável a derrota. Assim, apenas com o consentimento do senado é que o Presidente pode emitir uma nomeação por escrito.
Com isto, a relevância das “midterms” acaba por ser altíssima na medida em que é uma maneira de completar o sistema presidencial. Sem a atenção devida, estamos a deixar que passem impunes decisões que causam um impacto real na vida das mulheres, ou então que fiquem a meio caminho as ideias do atual presidente dos EUA. Sem o consentimento do Senado, será impossível livrar-nos do conservadorismo intrínseco presente no Supremo Tribunal de Justiça, e a que passem de maneira democrática decisões que nada fazem jus aos direitos das mulheres.
Com esta exposição fica a dúvida, até que ponto não estamos a prioritizar uma vida “soon to be” a uma vida que tem direitos a que se proteja a sua integridade física, e ainda mais que se protejam todos os direitos inerentes à sua pessoa. Não estará a premissa de a defesa de uma vida abstrata, a destruir vidas concretas de certas mulheres. A ideia inconcebível que parar as mulheres de realizarem abortos, vai necessariamente fazer com o número de abortos reduza, é apenas uma utopia sem qualquer fundamento nem base. Porque não olhar para a História, e perceber que ao longo de séculos, principalmente quando a mulher começou a ter a sua emancipação, o facto de uma “conduta” ser proibida, não significa que impeça uma mulher de realizar de modos impróprios e até inseguros a interrupção da gravidez.
A meu ver, o problema, parece-me, é que o povo americano auto-intitulado como “defensores da vida e da própria liberdade”, encontra-se numa situação de farsa, tendo em conta que são também os primeiros a espalhar o ódio e a criar incómodo em irrelevâncias. Um americano, é capaz de defender, o bebé que se encontra por nascer e que a olhos de muitos nem sequer pode ser o suficiente para se considerar vida em sentido estrito, para depois odiar emigrantes, ciganos, negros, proteger o uso das armas com todas as suas forças, defende as aclamadas penas de morte, reprime a comunidade LGBTQIA+, e mostra um ódio profundo às mulheres independentes e homens que defendem a emancipação absolutamente necessária da mulher.
Penso que independentemente das nossas convicções, quer sejam políticas ou religiosas, existe uma verdade que deve ser reconhecida, nenhuma mulher merece que se ditem regras sobre a sua maneira de agir, atuar, pensar e sobretudo o que decidir no que toca ao aborto. Deve existir uma abertura para a proteção da mulher, e não o seu enclausuramento. Quer se concorde ou não com a penalização do aborto, uma certeza é esta, deve-se proteger a mulher e deve-se disponibilizar meios para que haja segurança nos procedimentos a que a mesma se sujeita.