Rui Pinto e a democracia

por Comunidade Cultura e Arte,    3 Fevereiro, 2020
Rui Pinto e a democracia
Rui Pinto / Fotografia de Maria Feck

No dia-a-dia como nas grandes questões, não há aforismo que se salve. Ou a nós. O mundo não é a duas cores mas as mentiras brancas existem mesmo. “Estou ótima”, “não vi a chamada”, “estou quase quase a chegar”.

Idealmente, também os fins não justificam os meios ou, pelo menos, assim deveria ser.

(Quase) sempre.

Numa guerra assimétrica, é fácil identificar quem são os “fracos” que ousam desafiar os fortes. David e Golias não têm acesso aos mesmos recursos, não são igualmente poderosos e, por isso mesmo, não podem valer-se das mesmas estratégias.

Assim é a luta travada pelos cidadãos contra os abusos de poder dos estados. Desigual.

Nas democracias liberais, onde existe separação de poderes, é possível denunciar as más práticas das instituições do Estado através dos canais que ele próprio oferece. Contudo, este nem sempre é o caso. Quando o contrato social é rasgado ou arquivado ou objeto de umas adendas criativas, o melhor caminho para a sua restituição nem sempre é o que vem descrito no manual.

Suponhamos o impensável.

Por exemplo, que um governo decide espiar os seus próprios cidadãos e, mal por mal, o resto do mundo também.

Ou que um estado-membro da UE ajuda centenas de multinacionais a roubar milhares de milhões de dólares em impostos aos países vizinhos.

Finalmente, imaginemos o caso de um país pobre, em que metade da população vive abaixo do limiar da pobreza e cujos recursos naturais são continuamente pilhados por um clã de “meritocratas”.

Não é ficção. Aconteceu em países tão distintos quanto os Estados Unidos, o Luxemburgo e Angola.

O Estado, que nasce com o intuito de nos proteger – das dificuldades materiais, das ameaças externas e, em última análise, uns dos outros – reúne sobre si instrumentos de poder inigualável e potencialmente destrutivo. Com a tecnologia de que dispomos hoje, esta possibilidade é especialmente plausível e dramática. A soberania é popular, mas os órgãos de soberania nem sempre têm o mesmo entendimento. Daí que todo o escrutínio seja pouco e toda a responsabilização seja bem-vinda.

Já “todos sabiam” o que se passava em Angola, já “todos suspeitavam” dos danos colaterais da guerra do Iraque mas, sem as revelações, pessoalmente muito penosas, de whistleblowers como Chelsea Manning e Rui Pinto, não protestaríamos, não exigiríamos à justiça que atuasse ou aos governos que se retratassem. Não teríamos provas.

Isto não faz dos denunciantes a panaceia para os múltiplos e complexos problemas das nossas democracias. É fortalecendo as instituições e não confiando em figuras salvíficas que eles se resolvem. Mas também não autoriza a que diabolizemos estes homens e mulheres, apelidando-os e aos seus defensores de “populistas” – o descabido insulto com que hoje se atacam, indiscriminadamente, os adversários políticos.

Pelo contrário, a atenção deve estar no conteúdo das denúncias, na importância que estas têm ou não para a vitalidade do nosso sistema político. As intenções, histórias de vida e ideologias dos whistleblowers são bem menos importantes do que as dos protagonistas das histórias que eles nos dão a conhecer. Falemos antes, então, da corrupção em Angola, da conivência dos países do Ocidente e da inação da justiça portuguesa.

Rui Pinto está há quase um ano em prisão preventiva, acusado de 90 crimes de acesso indevido, violação de correspondência, sabotagem informática e tentativa de extorsão. É com base neste último que lhe viu ser aplicada a medida de coação mais gravosa do nosso sistema penal. A justiça portuguesa, que o tem atrás das grades, prefere não investigar e dificultar o trabalho a quem, lá fora, quer a colaboração de Rui Pinto para recuperar o que aos cidadãos pertence.

Focada no “criminoso” errado, envia uma mensagem desanimadora aos portugueses: a de que há, afinal, “dois pesos e duas medidas”. Num mundo em que o fosso que separa ricos e pobres não pára de aumentar, essa “justiça injusta” é sobremaneira angustiante. Por essa razão, mais do que um enquadramento legal, o caso de Rui Pinto exige uma análise política e ética. A confiança das pessoas nas instituições democráticas não sobrevive a um debate que se reduza a argumentos de natureza formal.

Texto de Inês Renda
A Inês é licenciada em Línguas e Relações Internacionais e mestranda em Ciência Política pelo ISCTE-IUL. De momento em Berlim, normalmente entre o Porto e Lisboa. Apaixonada por livros, teatro e café com leite.

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