Salto pintam de tons quentes as suas ‘Férias em Família’
Quando o homónimo Salto, primeiro lançamento da banda do Porto, foi lançado, representou uma das mais sólidas propostas de indie-pop português até ao momento. Nascido de uma linguagem que cruzava rock com electrónica e RnB, os êxitos Deixar Cair e Por Ti Demais (incluído na colectânea FNAC Novos Talentos de 2010), catapultaram a banda para o circuito de festivais nacional (o autor ainda guarda a nostálgica memória da enérgica actuação de 2012 em Paredes de Coura, em plena antecedência do imparável dilúvio que se abateu sobre o festival nas 72 horas seguintes). A então dupla dos primos Guilherme Tomé Ribeiro e Luís Montenegro cresce para quatro com a entrada de Tito Romão e Filipe Louro em 2015. ainda antes do segundo álbum, Passeio das Virtudes, em 2016 — lançamento que vê a fórmula mais pop e funky da banda em transformação. A sonoridade divide-se: um envelope rock e um núcleo sonhador, a voz de Guilherme prolongada em mais lentas composições; o núcleo do que é uma canção escrita pelo grupo adensa-se: para trás ficam as drum machines e sequências de dança, substituídas por um som mais orgânico e texturado, guiado porém pelas mesmas melodias fortes e identificáveis. Pelo meio, o grupo multiplica-se em identidades: Guilherme Tomé Ribeiro toca na banda de Moullinex e parte com o seu projecto a solo de electrónica experimental, GPU Panic; Luís Montenegro toca com Capicua e responde também por Lewis M; Tito Romão toca com Best Youth.
Férias em Família, dois anos após o seu antecessor, pega no nostálgico tema rico nas memórias de tempos mais simples, e acaba por se tornar na derradeira conclusão desta transformação. Ouvidos lado a lado e sem o devido contexto, é hoje um exercício surpreendente comparar o terceiro álbum do quarteto com o seu primeiro lançamento. Tomando a banda controlo total de todos os elementos da sua produção, praticamente cada faixa é repleta de instrumentação acústica e de brilhantes melodias — elementos que sobressaem na faixa mais característica do álbum, Rio Seco; uma viagem atmosférica banhada na combinação de sintetizadores por entre acordes de guitarra clássica e crescendos vocais. É a voz um dos elementos que mais sobressai no álbum, quer solitária ou acompanhada de outras camadas de coros, a colocação é lenta e sonhadora, acompanhando as progressões, cujas tendências vão sendo intercaladas ao longo do álbum. Cantar até Cair e Teorias, faixas iniciais, soam a um mergulho da face mais rock da banda no véu da quente calma e melancolia que envolve Férias em Família, ainda com um pé no trabalho anterior. Outras faixas surpreendem-nos tendo mais em comum ora com tendências clássicas orquestrais — como em Ninguém te Viu, uma das faixas mais tranquilas e belas do álbum, repleta de pastorais arranjos de cordas, ou até com o prog-folk e post-rock, em especial destaque na Casa de Campo — possivelmente o momento mais intenso do álbum — e na final Lentamente Pago Casa. Outras faixas apresentam características mais típicas da sonoridade da banda, e, apesar de sempre presente o tom morno, fluem com as suas distinções próprias: destaque para o momento psych em Só Agora Cresci ou para o refrão orelhudo e subtil trecho electrónico de Coração Aberto. Memória de Elefante, momento mais calmo das nove canções, serve como outro na transição para o quarto final e mais progressivo.
Em termos líricos, reúnem-se também, a par do álbum anterior, alguns dos melhores trabalhos da banda. Em letras honestas cantadas sem pretensão, Salto apostam na metáfora e desdobram os significados: numa primeira vista é fácil de imaginar os tons dourados dos acordes que pintam o álbum a contar a história do nostálgico misticismo juvenil das “férias em família”, mas é um pano que cobre também a viagem e crescimento do grupo enquanto músicos. Por detrás dos campos de tons pastorais (ou a extensão campestre presente no vídeo de Rio Seco) estão presentes nas letras as introspecções acerca dos inúmeros palcos, desafios e tendências que Salto enfrentaram desde que começaram a tocar ao vivo. Há um respeito pelo formato, e a franqueza das palavras funde-se com a estética das canções: seria difícil imaginar estas letras com outros arranjos, o que confere a cada música uma personalidade e visual vincados, por muita que seja a leveza e tranquilidade sonoras que transparecem no resultado final.
Férias em Família é construído com cuidado e muita atenção ao detalhe. Apesar de fácil de ouvir em background, desfrutar de uma audição atenta recompensa sempre com algum pequeno trecho ou subtil mudança musical — seja nas introduções, transições, refrões ou finais. Encarado como um todo, é um álbum irrepreensível que se localiza algures entre a melancolia de um pôr-do-sol e a esperança vivida durante o seu nascimento. É esta, simultaneamente, a sua maior força e também a sua maior falha: a primeira, trivial o suficiente, pode ser encontrada na maior parte das linhas acima. A segunda, mais traiçoeira, está relacionada com a fórmula e originalidade do formato: apesar de tecnicamente virtuoso, não estamos perante um momento de excepcional inovação ou de viragem do estado-da-arte — Salto fizeram um álbum de rock inteiramente sólido, mas sem grandes desvios estilísticos ou líricos que se destaquem em relação às raízes do seu género ou artistas similares. É um lançamento de grande maturidade para a banda e provavelmente o seu trabalho mais coeso e de maior complexidade de composição até ao momento (uma das comparações mais fiéis que recordo seria Goldfrapp com o seu Seventh Tree, um álbum num registo semelhante que se destaca também em relação aos demais da artista). Estes elementos entram em contraste, no entanto, com a energia adolescente e com as tendências mais pop que marcaram o início do seu sucesso. Pisando palcos juntos desde 2006, é fácil de admirar o progresso e destreza técnica de Salto, mas também de desejar que mantenham a identidade de fazer jus ao seu nome. E é em Férias em Família, precisamente, que deram o seu maior salto.