Salvador Sobral: viagem ao universo de Jacques Brel
Depois de o ter feito em 2017, a Sala Suggia da Casa da Música voltou a receber Salvador Sobral para um concerto lotado. Espaço completamente preenchido, incluindo os assentos atrás do palco. O cantor sempre foi bem recebido por terras invictas, mas esta ocasião era diferente. Sem nenhum álbum para promover, o espetáculo deste sábado teve um único propósito: honrar Jacques Brel, o célebre artista das chansons que refletem a alma da língua francesa que escreveu um conjunto de poemas belos e imortais. Com novos arranjos e a sua voz inconfundível, Salvador Sobral convidou-nos a participar neste “ritual de adoração” a Brel.
A voz de Brel ouve-se pela Sala Suggia. Um espírito que não nos abandona, permanece e dá-nos as boas-vindas ao seu universo. A viagem por ele começa com “J’arrive”, um anúncio triunfal da chegada dos músicos ao palco. “Quand On N’a que L’amour”, um pouco mais contida, seguiu-se e permitiu relembrar o quão exímia é a prestação vocal de Sobral.
O cantor explicou como surgiu a ideia de honrar Brel. Depois de atuações pela Europa, alguns espetadores apontaram parecenças entre os dois artistas. Curioso, foi investigar e apaixonou-se pelo repertório do poeta belga. Descobriu as tais coisas em comum – “ele já fazia as coisas com as mãos que as pessoas acham esquisito há 50 anos”, nota.
“Les Paumés du Petit Matin” mostra a criatividade bem-humorada de Sobral para retratar as histórias de Brel, com brincadeiras da banda a entoar a palavra “copain”. Já “Isabelle” é uma canção de amor doce. E antes do concerto prosseguir, uma pausa para se ler um texto que tinha ficado esquecido. Um óbito feito por nada mais nada menos do que Miguel Torga: “Morreu Jacques Brel (…) É uma alma penada em carne viva a penar por todos nós.”
“Le Moribond” é dos momentos mais animados da noite. O seu intérprete salta e corre pelo palco cheio de alegria, sem nunca falhar nenhuma nota, como já nos habituou. É também nestas canções mais animadas que a banda improvisa e mostra toda a sua capacidade. “Les Bonbons” é o próximo tema e a teatralidade aumenta: o artista encarna uma espécie de criança inocente e produz uma prestação tão engraçada como bonita.
Ouvimos Brel de novo. ”Les Bourgeois” continua as malandrices das canções anteriores, mas isso estava prestes a mudar. “Mathilde” é um desabafo catártico de raiva apaixonada. A banda e Sobral entregam-se por completo à intensidade do crescendo da peça. No final, depois de uns bons aplausos, até confessa: “A filha do Brel diz para não cantarmos as canções do pai com tanta força, mas não resisti”.
Encerra assim o Ato I. Sim, porque “esta casa não tem uma cortina”, mas há uma mudança de cenário. Os músicos saem do palco, exceto Salvador Sobral e Inês Vaz com o seu acordeão. Os dois sentam-se em lados opostos de uma mesa colocada no lado direito do palco. As luzes diminuem até ao ponto mais minimalista. “Amsterdam”, um canto solitário no silêncio da noite, absorve o espetador pelo seu intimismo.
O resto da banda junta-se à mesa. O que se segue é dos arranjos mais criativos da noite, aplicados a “Vesoul”. O ritmo é desacelerado e a banda canta a cappella para ajudar a embalar a melodia principal de Sobral, com o cantor a gesticular como se estivesse num bar a discursar para os amigos. A ideia continua com “Ces Gens Là”, esta com mais raiva por trás. “Bruxelles” é o grandioso fim para a festa, com todos os artistas a bater na mesa em amena cavaqueira.
Fim do Ato II, todos regressam ao centro do palco e aos seus respetivos instrumentos. A voz de Brel regressa dos céus. É a vez de “La Chanson des Vieux Amants”, a poesia melancólica que se tenta agarrar às memórias do passado que estão cada vez mais distantes. De certa forma, todo o concerto é prova disso, mas é neste momento que não deixam dúvidas a ninguém: Salvador Sobral é um excelente intérprete, talvez o melhor de Portugal. A dor delicada, a saudade portuguesa incorporada nesta chanson francesa, acompanhada por um belo piano. O momento mais arrepiante da noite na Casa da Música.
“Jef” e “La Chanson de Jacky” foram as duas últimas a serem tocadas antes do fim. Só que não era obviamente o final do espetáculo e nem o próprio Salvador Sobral o tentou esconder – já são tantos anos disto que até os próprios artistas estão fartos de fingir. Mesmo assim, lá se despediram e as luzes mantiveram-se desligadas.
Brel fala com o público uma última vez. Sobral desce do palco e encosta-se à frente da plateia, apenas com um microfone na mão e um holofote sobre ele. “Ne Me Quitte Pas” cantado a cappella. A magia vocal do artista é o suficiente para suspender a Sala Suggia no silêncio mais sagrado deste ritual.
Uma verdadeira celebração tem de terminar em grande e Sobral sabe-o. O cantor agarra um megafone, começa a cantar ”Au Suivant” e anda à volta da plateia por um lado e, do outro, o guitarrista André Santos faz o mesmo. Os dois vagueiam até trocarem de rota um com o outro enquanto o resto da banda se mantém em palco. Quando a dupla regressa, salta-se para a derradeira canção. “Madeleine” é a última parte desta festa e até o público participa com palmas. Cada instrumento tem um momento individual para brilhar até ao climax em que todos contribuem. A viagem pelo universo de Brel termina.
Salvador Sobral honrou o legado de um dos grandes nomes da música. E a cada tournée que realiza ficamos com a sensação que um dia também ele partilhará desse estatuto. Noites como a do último sábado na Casa da Música certamente ajudam.