Sam the Kid no Coliseu dos Recreios: retrospectiva de um amor profundo
Há vinte anos atrás, Portugal perdia um dos seus maiores artistas, Amália Rodrigues. Foi o fim triste de uma intérprete de carreira brilhante que enalteceu a cultura portuguesa. Paralelamente, um novo artista começava a dar os primeiros passos num mundo musical ainda pouco desenvolvido e conhecido em Portugal: Sam the Kid estreou-se nesse ano com Entre(tanto) e desde esse momento que o hip hop e a música portuguesa nunca mais foram os mesmos.
Se ainda havia dúvidas sobre o papel deste artista na disseminação da cultura hip hop, a prova definitiva surgiu no passado dia 18 de Outubro no Coliseu dos Recreios, numa celebração condigna da carreira brilhante do rapper e produtor de Chelas. Perante uma sala esgotada, o músico fez-se acompanhar pelos seus colegas de Orelha Negra, AMAURA, David Cruz e por uma orquestra de 24 intérpretes liderada pelo maestro Pedro Moreira. No decorrer do concerto, surgiram também convidados indispensáveis ao percurso do artista e, nessa noite, testemunhou-se em todo o seu esplendor a cultura da street com um merecido acompanhamento de elite.
Para contar uma história, há que começar pelo início: depois de uma ovação esmagadora propalada pelo subir do pano, o sample de cordas que introduz “Entre(tanto)” foi honrosamente replicado pela orquestra, acompanhado pela poesia de Napoleão Mira. O pai de Sam the Kid abriu o concerto com grande entusiasmo, e os seus versos escorregaram para as barras do rapper na incisiva “A Partir de Agora”, transportando o público do passado mais longínquo para o passado mais recente do seu último álbum a solo, Pratica(mente). “É uma honra estar aqui”, declarou o músico, agradecendo de forma curta e directa todo o apoio demonstrado por um público visivelmente emocionado.
“Decisões” introduziu Sobre(tudo) no espectáculo, após a qual Sam the Kid declarou o intuito desta celebração: “Vamos viajar, quero que acompanhem o percurso todo”. Histórias da sua caminhada foram partilhadas, e convidados que a ajudaram a construir marcaram a sua presença em palco. Depois de NBC ter emprestado a sua potente prestação vocal a “Juventude (É Mentalidade)”, foi a vez de Sanryse e Xeg surgirem para “Xeg & Sam”, tema que proporcionou uma reflexão sobre o percurso por parte de Sam the Kid: “Foram precisos vinte anos para cantarmos esta música ao vivo.” A espera foi longa mas as palavras continuavam na ponta da língua.
E não foi a única estreia nessa noite: “O Crime do Padre Amaro” trouxe Carlão e SP Deville para mais uma viagem no tempo. Mas se o passado esteve em especial destaque, a actual carreira de Sam the Kid também não foi esquecida: Mundo Segundo foi um dos artistas a marcar presença nesta festa musical, aparecendo ao lado do seu amigo de longa data para as mais recentes “Gaia Chelas” e “Tu Não Sabes”, e servindo de hype man na estrondosa “Não Percebes”. Infelizmente, alguns não puderam estar presentes, como Snake, amigo de Samuel Mira falecido em 2010. Mas foi excelentemente homenageado em “PSP” e “Negociantes”, após o qual “Hereditário” mostrou alguma da tristeza que ainda assola Sam the Kid.
“Poetas de Karaoke” surgiu nos momentos finais para deleite de todos os presentes, que entoaram a música de uma ponta à outra e certamente que nenhum deles alguma vez imaginaria entoar barras inspiradas a abanar cabeça e as mãos ao som de ABBA. Mas é essa a magia de Sam the Kid e a sua MPC, a sua companheira nesta caminhada e que esteve em destaque um pouco ao longo de toda a actuação. No final, “Sendo Assim” trouxe-o a ele e à sua coleccionadora de cantigas antigas de volta ao local onde tudo começou. Sentado num espaço no palco a simular o “quarto mágico”, Sam the Kid deu a entrada para a última música como se fosse a primeira que fazia. No final, restava apenas chamar todos aqueles que o ajudaram a trilhar este percurso e aquela noite, e terminar com uma vénia honrosa e um “Adeus, até à próxima”.
Os fãs não se conformaram. Ouviu-se barulho ensurdecedor e o nome do artista foi entoado por todos aqueles que ainda não estavam prontos para dizer adeus a este momento histórico. Para muitos ali foi a primeira vez que viram Sam the Kid em nome próprio e a actuação certamente que os deixou mal habituados. É compreensível: o rapper proporcionou um concerto bem estruturado que resumiu espectacularmente a sua carreira. Há vinte anos, a realidade do hip hop em Portugal era muito diferente da actual. E se as coisas mudaram muito se deve ao trabalho de Samuel Mira. Seja ao leme de projectos intemporais e clássicos do género, seja o seu papel de curador de conteúdos através da plataforma TV Chelas, naquela noite tudo isso se juntou e o “poeta sem valor reconhecido” fez a sua retrospectiva de um amor profundo e inimitável. E felizmente que nos levou à boleia nessa fantástica viagem.