Sandro William Junqueira: ‘Quero fazer uma literatura por dentro da vida’
Um novo livro, um novo mundo no universo de Sandro William Junqueira.
Em “Quando as girafas baixam o pescoço” (Caminho), várias personagens habitam uma urbanização que pode ser a de um qualquer subúrbio de uma cidade dominada pela crise, seja económica ou humanista.
Uma mulher gorda gosta de comprar flores, um desempregado faminto sonha com goulash, duas irmãs são como Esaú e Jacó. Um homem deita sementes para um buraco. Um macaco provoca uma reunião, uma mulher espreme sumo de limão para os seios.
As imagens são fortes e apresentam-se como “blocos” de uma organização que, numa primeira análise, está próxima da realidade. A escassez de ligações propõe que o leitor contribua para a construção do sentido de um livro que, tal como outros de Sandro William Junqueira, oferece coordenadas mínimas.
As incoerências do ser humano são expostas pela escrita despojada do autor de “No céu não há limões”, “Um piano para cavalos altos” e “O caderno do Algoz“. É uma realidade que expõe o isolamento e a solidão de indivíduos que vivem muito próximos uns dos outros.
A presença de outros escritores não é ostensiva e só nas “palavras apetrechadas de asas” ou nos nomes de personagens é que se pode reconhecê-las. No entanto, estão lá, e ler Sandro William Junqueira é ler, indirectamente, escritores inscritos na literatura universal.
A Comunidade Cultura e Arte conversou com o autor nas Correntes d`Escritas, na Póvoa de Varzim.
Na mesa em que participaste nas Correntes d`Escritas, falaste em Paul Thomas Anderson. Este livro fez-me recordar o filme Magnólia. Porquê esta fragmentação estrutural, estas várias linhas narrativas?
Em termos formais, gosto muito do fragmento.
Na parte estética da escrita, tento sempre que os meus livros e os meus textos não tenham gorduras. E como eu não sei muito bem o que vou escrever, surge uma ideia ou uma imagem e fica logo naquele bloco. Depois vão aparecendo esses blocos e vão ficando assim. É claro que alguns textos ficaram maiores e depois eu estive a parti-los. Aparentemente, o livro parece meio caótico, mas a estrutura foi muito pensada. Perdi muito tempo com o alinhamento e a montagem dessas histórias, desses blocos. Há um momento em que essas linhas se começam a aproximar. Gosto muito disso.
Tudo faz sentido, no fim do livro?
Sim, mas não deixa de haver algumas pontas soltas, alguns buracos por preencher. Não gosto de livros muito bem acabados. Aquela ideia de uma história muito bem contada. Desconfio sempre.
Parte muito da forma como eu olho para as coisas. No primeiro momento, quando estou a criar um bloco, eu sigo o instinto. Nunca deito nada fora, mesmo que a ideia pareça absurda e que não haja ligação nenhuma entre o que já está escrito e o que estou a escrever no caderno. Quando percebo que tenho pedra suficiente para esculpir, começo a escavacar, a escavacar… Por vezes só compreendo o livro muito depois. A escrita é muito instintiva. Não conhecer faz-me escrever.
Podemos pensar em “Quando as girafas baixam o pescoço” como um romance de personagens? Como é que estas figuras te surgem?
Sim, neste caso a primeira coisa que me apareceu foi mesmo a primeira página com a imagem de um velho com um pacote de sementes; há um buraco ao lado, e ele atira as sementes. Depois comecei a escrever mais sobre o velho. É como nas estafetas. Um começa a correr e depois passa o testemunho a outro, que agarra o testemunho e o passa a outro…
Se não me engano, a primeira imagem que tiveste, em “No céu não há limões”, foi a de um padre…
Foi a do padre e da velha a sair de casa em direcção ao limoeiro. Foram as duas. Só muito mais tarde, a cerca de quatro meses de acabar, é que percebi que essa imagem do padre era o final do livro.
Estás longe de ter um guião?
Muito longe, muito longe. Nunca faço isso. Apesar de sofrer mais, o prazer que tenho quando sou surpreendido é muito maior.
Esse olhar sobre o movimento das personagens tem algo a ver com a tua própria interpretação como encenador?
Sim, mas é engraçado porque entra em contradição com aquilo que disse. As pessoas vêem sempre o escritor como o grande manipulador, o grande condutor de títeres. No meu caso não é bem assim.
Isso é já numa fase final. Na segunda parte, quando eu começo mesmo a partir o livro e a cortar, aí tenho uma intervenção. Até esse momento, a minha escrita aparece-me instintivamente. Há a instalação de um ambiente, de uma atmosfera, com os seus adereços. Isso talvez tenha a ver com o facto de ter feito teatro e de ter sido designer gráfico. Isso tudo ficou em mim e passa para a escrita.
Mencionas um cavalo que quer aprender a tocar piano, os limões são também mencionados. São piscares de olho a livros anteriores?
Há sempre frases ou algumas personagens que passam de livro para livro. Há aí uma frase que entrará no próximo livro. Já comecei a escrever e essa frase estará lá.
Em “Um piano para cavalos altos” e em “O caderno do Algoz” há sempre um homem pequeno. Num livro é nomeado como anão, no outro é nomeado como raquítico. No entanto, é sempre a mesma personagem.
Uma personagem de “O caderno do Algoz” apareceu em “No céu não há limões”. Há transferências de personagens e por vezes de elementos.
É como estar a encenar uma peça com um cenário e figurinos; depois, numa outra peça, eu pego nalguns desses endereços e continuo a utilizá-los. Tem algo de continuidade.
Tentaste mostrar o todo pela parte? É a Humanidade que está neste livro?
Em todos os meus livros, de alguma forma, quero fazer uma literatura por dentro da vida. Este livro, que está mais longe dos outros mais distópicos, está mais próximo de uma realidade com que qualquer pessoa se identifica. É menos distópico. Os temas são os mesmos. É mais fácil de entrar neste porque é algo que conheces mais de perto.
Como escritor, tenho a obrigação ética de olhar para o mundo e a responsabilidade de apontar e de denunciar o que me incomoda. Ao mesmo tempo, também me fascina a nossa ambiguidade, os nossos pluralismos e as nossas lutas. Mesmo a questão entre a racionalidade e o mundo animal. O livro tem um animal no título propositadamente. Nós, como espécie, afastamo-nos da natureza. Primeiro, por procurarmos o bem-estar; depois, por nos julgarmos superiores; também para fugirmos à imprevisibilidade, de que não gostamos nada. Mas a verdade é que a natureza não saiu de nós. Estas personagens são vítimas de impulsos que as levam para muito próximo do mundo animal. O Homem Desempregado [personagem] quase que se transforma num animal. Ele deixa de ter dinheiro para pagar as contas da luz e da água. Quando nós não temos dinheiro aproximamo-nos mais da animalidade. Há essa relação e essa luta entre a civilização com o mundo animal. É algo que está em todos os meus livros.
Sobre esse Homem Desempregado, escreveste o seguinte:
“Está desempregado. Cospe nos livros de filosofia. Já não coloca questões como: será a vida apenas um constante fazer de cemitérios? coloca outras: gás ou luz?”
Há literatura sem pão?
Não há. Não é possível. É curioso perceber que os gregos tinham tempo para pensar porque tinham escravos. Esse homem é o exemplo de alguém que estudou muita filosofia e que, por circunstâncias da vida, se interroga: ” de que me serve a filosofia se não tenho dinheiro para comprar o pão?”
Mais uma vez o confronto entre a parte mais animal, os nossos instintos primários, e o grande pensamento.
Os livros separam o homem da mulher, neste livro…
Não sei por que fiz com que ficassem separados….
Criei essa personagem por que queria fazer uma homenagem aos livros e à leitura. Não cheguei aqui sozinho. Os livros nascem sempre de outros livros e os escritores da leitura. Por exemplo, as irmãs Cátia com K e a Cátia com C é claramente uma resposta à leitura da Bíblia, de Esaú e Jacó, irmãos que lutaram dentro do ventre. A Cátia com K é quase uma Penélope que não sabe do marido que foi para a guerra. O médico que cuida da mãe da Cátia com K é um dos médicos que entra numa das peças do Tchékhov.
O personagem diz versos de Herberto Hélder, frases de Clarice Lispector. São autores de que gosto muito. Há uma série de referências. Neste livro procurei responder aos livros e às leituras que fiz.
O primeiro texto que escrevi foi aquele em que ela gosta dele e lhe oferece livros. Só que há um momento em que ele fica mais interessado pelos livros do que por ela, e ela fica ressentida.
Explorei isso até ao limite. Ela acende uma fogueira com os livros e depois acaba com ele porque não aguenta mais. Ela quer afectos; não quer palavras.
Falámos do teatro e dos livros que entram na escrita. Disseste uma vez que eras um músico frustrado.
Sim, é verdade.
Em “Quando as girafas baixam o pescoço” tens várias menções à música e a músicas em concreto. Qual é a tua ligação com a música?
William Faulkner disse que os escritores queriam era ser compositores, mas como não tinham talento…
A música é a maior de todas as artes e aquela que nos aproxima mais da eternidade. Todos os meus livros têm uma música no fim.
Tenho paixão pelo piano e pelos pianistas. Sempre que vejo um pianista a tocar emociono-me. Eu gostava muito de ser pianista, mas não tenho talento. Tento fazer com as palavras o que os músicos fazem com as notas. Tento atingir a universalidade e emocionar as pessoas. Muito facilmente a música consegue pôr-te a chorar, a rir, a mexer o corpo, a viajar no tempo. É mais difícil que um livro consiga fazer chorar um leitor.
A música “too many birds” (Bill Callahan), que está nas últimas páginas do teu livro, é de grande melancolia. Porquê esta música?
É um dos discos mais bonitos que alguma vez ouvi. O disco todo [Sometimes I wish we were an eagle]. Essa música é maravilhosa. Quando terminei o livro, andava à procura de uma música. No livro há aquele negócio da gaiola, em que ele põe as pessoas na gaiola e o pássaro está fora da gaiola. Pensei que era perfeito. Essa melancolia apanha muito bem o tom do livro.
Nas dedicatórias mencionas que João Ricardo Pedro [Prémio Leya 2011] sugeriu mais 100 páginas. “Quando as girafas baixam o pescoço” era para ser diferente do que é?
Este livro nasce de um texto que escrevi há uns quatro ou cinco anos. Na altura, quando o escrevi, surgiram algumas personagens. Enviei o texto para o João Ricardo, ele gostou muito e disse-me para escrever mais cem páginas, pois dava um romance. Nunca mais me esqueci disso. Entretanto, tinha acabado “No céu não há limões” e já estava a escrever um novo, quando abro um documento que tinha esse texto. Olhei para aquilo e lembrei-me da frase do João Ricardo. Comecei a escrever e a ficar muito entusiasmado.
Em vez de nomes próprios, muitas personagens são caracterizadas pelas funções que executam ou por adjectivos. Qual a razão?
No meu primeiro livro, tinha a noção que estava a querer criar um território ficcional que fosse só meu e que fosse o mais universal possível, ou seja, um território que qualquer pessoa pudesse imaginar e intervir.
Os meus livros são um pouco contra o cânone, pois não dou tempo nem espaço. Dou poucas referências.
Tinha dificuldades em baptizar as personagens. Experimentava um nome e depois punha, por exemplo, “ruiva”. Se eu desse um nome, estava a dar uma bandeira. Nos primeiros livros, não senti essa necessidade. Neste livro, comecei com o Desempregado, mas depois surgiram as cátias. Num outro momento, há o Cantor de Rua e aparece o Oleg. Pensei que a junção dos dois ficava bem. Se calhar é uma passagem de testemunho para o que vai acontecer no próximo ano. A personagem principal poderá ter nome.