Saudades de rios que secaram

por Paulo Rodrigues Ferreira,    20 Fevereiro, 2023
Saudades de rios que secaram
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Tenho saudades de imagens amarelecidas, de rios que secaram, saudades da minha avó, bruta, a acordar-me às sete da manhã para a escola com palmada militar na porta. “Se faltares às aulas e acabares a carregar baldes de cimento, o problema é teu”, resmungava, e rumava à cozinha para me enrolar um par de sanduíches em papel de alumínio. Quando no final da tarde o autocarro a cheirar a mofo me despejava à porta de casa, era com aparente indiferença que ela me recebia. Se regressasse ao lar queixando-me, por exemplo, das cotoveladas recebidas a jogar à bola durante o recreio ou da rispidez do professor de matemática, ela não escutava, antes preferia centrar-se nas roupas esfarrapadas e pintadas de lama e relva que eu trazia vestidas. Para além disso, qualquer trambolhão, cabeça rachada ou acidente ocorrido na escola era sempre culpa minha ou, como me dizia ela, “é para abrir os olhos”. Dou por mim agora a sentir falta desta falsa rispidez, deste amor envergonhado de quem nutria sentimentos reprimidos pela vida dura e mostrava carinhos através da constância dos gestos.

“‘A memória é uma invenção da miséria’, escreveu André Gide em “O Imoralista” (1902). Recorro a palavras menos belas para afirmar que lembramos por sofrermos, por não estarmos como queríamos ou acharmos que noutro lugar, com outras pessoas, seríamos felizes como não somos agora. São as agruras do presente que nos põem a recordar e a melhorar ocorrências que já não existem.”

A infância foi há duas semanas. Não sei como me fugiram estes quinze dias que viraram eternidade. Desconheço onde se escondeu o menino cheio de borbulhas que escrevia cartas de namoro à Raquel do oitavo ano. Sinto ter tropeçado em duas noites mal dormidas e despertado décadas mais tarde, de olheiras carregadas, apoquentado com os afazeres diários, cercado de pais como eu, abancados à porta do colégio onde estudam os filhos, ruminando acerca dos males do mundo, antecipando a chegada da idade das doenças, dos músculos flácidos e das dores aqui e acolá. Embonecado com roupas de ginásio e orgulhoso da sensação de perfeição transmitida pelo carro de alta cilindrada atrás de si estacionado, declara um desses pais que recentemente começou a contar os passos e as calorias ingeridas. Acrescenta outro pai, orgânico dos pés à cabeça, que nem ele nem os filhos ingerem açúcar, que o segredo da longevidade passa por tomar duches de água gelada e atulhar o corpo de vitaminas. É estranho que eu e estes pais nos envolvamos em conversas que nos fazem parecer primatas competindo para ver quem é o mais esbelto e bem-sucedido. Estranho porque ainda ontem, ainda há dois séculos, a mãe de amiguinho do liceu abastecia a mesa de aniversário de bolos sortidos e refrigerantes e nos incentivava a agarrar nas bicicletas e a pedalar até tocarmos no sol.

“A memória é uma invenção da miséria”, escreveu André Gide em “O Imoralista” (1902). Recorro a palavras menos belas para afirmar que lembramos por sofrermos, por não estarmos como queríamos ou acharmos que noutro lugar, com outras pessoas, seríamos felizes como não somos agora. São as agruras do presente que nos põem a recordar e a melhorar ocorrências que já não existem. Remoemos em aflições antigas, amplificamos melancolias, choramos múltiplas ausências, múltiplos mortos, desaparecidos, caras cujos traços apagámos. Revivemos diálogos com a avó falecida, rescrevemos cartas a uma Raquel que já não existe no mundo como aquela do oitavo ano e escutamos músicas trancadas no baú para ver se ao mirarmos no espelho nos reaparece o petiz das borbulhas, a explodir de sonhos. O passado é o futuro que conhecemos, o futuro que não traz ansiedade nem temor, é um álbum de recortes nostálgicos que beneficia de estarmos constantemente a redesenhar faces, a aperfeiçoar a memória de modo a que aquilo que aconteceu não tenha qualquer correspondência com os nossos sentimentos sobre esses mesmos acontecimentos. 

“Não quero namorar contigo. Estou interessada noutro rapaz”, escreveu Raquel há não sei quantos milénios, em resposta ao meu pedido de namoro. Em vez de recordar a dor que me rasgou o estômago ao acolher tamanha rejeição, sorrio pensando que também nas mágoas se vislumbra felicidade. O passado, só por ter acontecido, parece luminoso, digno de revisitação e glorificação, e é aqui que reside a miséria da memória. Apreciamos aquilo que nos impede de caminhar, julgamos que, percorrendo trilhos pisados por versões anteriores de nós próprios, abriremos portais encantados. Mas a memória mente. 

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