Scarlett O’Hara: um retrato feminista ou sexista?

por Tiago Vieira da Silva,    11 Novembro, 2017
Scarlett O’Hara: um retrato feminista ou sexista?
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Margaret Mitchell começa por descrever Scarlett O’Hara como uma rapariga que não era bela; mesmo assim, muito raramente os homens se davam conta disso quando seduzidos pelo seu encanto pessoal. E Tudo o Vento Levou foi publicado em 1936 e tornou-se imediatamente um best-seller, e também a adaptação cinematográfica produzida por David O. Selznick e assinada por Victor Fleming, lançada em 1939, arrecadou uma das maiores bilheteiras da história do cinema. Surgida num período onde se fazia sentir o espectro da Segunda Guerra Mundial, a obra de Margaret Mitchell não é apenas sobre a perspectiva feminina da guerra; é, essencialmente, sobre a perspectiva feminina de um mundo em transformação – num contexto histórico específico – onde a necessidade de sobrevivência é crucial. Sobreviver às atrocidades da guerra, sobreviver às exigências de classe e de género do universo social em que habitam, sobreviver num contexto de reconstrução do pós-guerra.

Scarlett O’Hara emancipa-se num mundo onde domina o cavalheirismo, no qual, para se ser uma “senhora”, é necessária a subordinação às regras de conduta exigidas pela sociedade ao sexo feminino. Scarlett é uma southern belle, filha de uma rica família esclavagista do Velho Sul que, como muitas outras, não quer abdicar dos escravos e da sua vasta propriedade na Geórgia. E, não obstante vislumbrar também a guerra como a derradeira ameaça ao mundo de paz e serenidade onde vive, Scarlett insurge-se contra muitas das normas impostas pela sua classe social: sem constrangimentos, dança numa festa quando lhe dizem que deveria estar em casa de luto pelo marido morto na guerra, apodera-se do negócio do segundo marido e torna-se uma mulher independente, casa-se pela terceira vez num curto espaço de tempo depois da morte do último marido, faz negócios com os ‘inimigos’ após a guerra – os yankees e os exploradores nortistas.

Contudo, será isto suficiente para que Scarlett O’Hara seja considerada uma personagem feminista? Várias das críticas a Scarlett prendem-se com acusações de que ela é uma personagem que condensa todos os estereótipos negativos atribuídos à mulher ao longo da História. Scarlett, por pertencer a uma família esclavagista, por tecer comentários assumidamente racistas, por ser, muitas vezes, desprovida de escrúpulos e incomensuravelmente ambiciosa, é susceptível de ser interpretada como uma representação pejorativa da mulher emancipada. E, ainda que Mitchell apresente uma visão saudosista do Velho Sul, paralelamente, parece muito mais crítica em relação à galeria de personagens que representa a alta classe social decadente da Geórgia – inadaptáveis à mudança dos tempos, e que permanecem fiéis aos valores de dignidade nos quais acreditam, discriminando Scarlett e o percurso que esta traça a fim de se reerguer da pobreza. Por sua vez, Melanie Wilkes, arquétipo da mulher de família de ideais ordeiros, serena e ponderada, que também escolhe manter a honra e a dignidade, é a única personagem que defende Scarlett dos restantes personagens – além de ser a única mulher que respeita a prostituta Belle Watling, que, por sua vez, Scarlett despreza resolutamente.

São várias as contradições que perpassam a teia de relações entre as personagens de E Tudo o Vento Levou, sobretudo na representação das mulheres. Scarlett emancipa-se num contexto histórico específico, e, portanto, é necessário ter em conta o impacto que os ensinamentos e valores culturais têm na construção do próprio carácter do ser: uma mulher que se consegue emancipar e ao mesmo tempo permanecer fiel a alguns dos seus valores e princípios – por mais conservadores que alguns possam parecer no presente – e rejeitar outros a fim de assegurar a sua sobrevivência. Ainda assim, parece relevante ter em consideração os argumentos que sustentam a ideia de Scarlett condensar muitos dos estereótipos negativos atribuídos à mulher ao longo da História; a sua emancipação caracteriza-se, muitas vezes, por acções moralmente duvidosas que acabam por consolidar a imagem de uma personagem interesseira, manipuladora – características que nos fazem recordar das femme fatale.

Todavia, a maneira como estas contradições se conjugam na construção de uma personalidade que nem o próprio leitor consegue definir como ‘boa’ ou ‘má’ parece constituir o objectivo de Mitchell em criar uma personagem assumidamente complexa; uma mulher com ideologias e convicções próprias, e que, mesmo assim, é capaz de contestar muitos dos preceitos da sociedade em que se insere. É diferente, portanto, apresentar um personagem com defeitos, e apresentar um personagem cujos defeitos pretendem directamente pejorar um género. Scarlett é uma mulher que se insurge no seu tempo, e, portanto, muitas das suas atitudes não são compatíveis com os princípios defendidos pelo movimento feminista da atualidade. Scarlett não condena o esclavagismo, e, no pós-guerra, consente que os trabalhadores da sua empresa – condenados de guerra – sejam também submetidos a condições laborais desumanas.

Outra das críticas à obra de Mitchell prende-se com uma suposta representação sexista de Scarlett; o seu carácter tempestuoso e forte intimida todos os homens excepto Rhett Butler, personagem meticulosamente descrito como o típico galã “canastrão”, sensual, cínico, que não teme nada nem ninguém. O momento em que Rhett leva Scarlett para o quarto, contra a sua vontade – e têm relações sexuais – é possivelmente o que suscita mais críticas neste sentido: o fetiche masculino heterossexual em dominar e subjugar a mulher arrogante, altiva, tempestuosa. Contudo, podemos replicar interrogando porque razão é que o fetiche masculino é sempre o primeiro a ser pensado, e o da mulher descartado. O livro é escrito sob uma perspectiva feminina, logo, não será a mulher o objecto sexual, mas, ao invés, o homem. A descrição física e psicológica de Rhett Butler e os momentos de tensão sexual descritos entre ele e Scarlett podem considerar-se, portanto, fragmentos de fantasias sexuais da própria autora. A criação de um ideal de homem paradoxal nos seus comportamentos, atitudes, sentimentos: um homem que tanto compreende a personalidade insurrecta de Scarlett, como ao mesmo tempo encarna os impulsos de dominação, obstinação e subjugação tão associados à ‘virilidade’:

«Her head was crushed against His chest and she heard the hard hammering of his heart beneath her ears. He hurt her and she cried out, muffled, frightened. (…) She screamed, stilfed against him and he stopped suddenly on the landing and, turning her swiftly in his arms, bent over and kissed her with a savagery and a completeness that wiped out everything from her mind but the dark into which she was sinking and the lips on hers.» (Mitchell, Margaret, Gone with the Wind, 2008: 1311)

Será que, porém, Scarlett aceita a sua condição enquanto mulher submissa ao marido? É contraditório fazermos esta suposição depois de todo o seu percurso, sobretudo quando ela se torna uma mulher financeiramente independente, e também por ter firmado, perante Rhett, que não desejava ter mais filhos.

Scarlett é a personagem que tanto consegue insurgir-se no seu tempo, como também ser, ao mesmo tempo, “politicamente incorreta”. Não podemos, contudo, esperar que um individuo se desligue totalmente dos valores e princípios em que foi educado – e é neste sentido que a obra de Mitchell sobressai, por apresentar um retrato verosímil da emancipação da mulher num contexto histórico onde impera o racismo, o sexismo, o conservadorismo. Louvamos a maneira como Scarlett contesta alguns destes princípios, mas também desaprovamos outros que ela defende, assim como muitas das decisões que ela traça no seu percurso. Scarlett não quer ser uma heroína, mas uma anti-heroína; uma personagem inquieta com a sua sobrevivência num mundo em transformação, não com a sua sobrevivência dentro de uma classe social.

Notas de referência
Mitchell, Margaret (2008) Gone with the Wind, Simon & Schuster, New York

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