“Se isto é um homem” e “Vozes de Chernobyl”: dois livros do século XX que nos ajudam a entender o presente e a preparar o futuro
O século XX foi o século em que aprendemos quão frágil é a presença do Homem no planeta Terra. Foi o século em que aterrámos na lua pela primeira vez, como prova da nossa superioridade enquanto espécie, e, afinal, o que descobrimos desde então foi quão insignificantes somos neste pequeno ponto azul. As duas Grandes Guerras, o maior genocídio do século, o desastre nuclear de Chernobyl e os bombardeamentos atómicos de Hiroshima e Nagasáki abalaram o mundo e as convicções da humanidade no avanço tecnológico e no progresso.
Para Primo Levi e Svetlana Alexievich, que escreveram alguns dos livros mais importantes de (e sobre) esta época, o século XX marcou o início de uma nova era. Em Se isto é um homem, primeiro livro de Primo Levi, publicado em 1947, o autor leva-nos a confrontar um mundo que nunca voltará a ser o mesmo depois de conhecer as atrocidades infligidas aos milhões de judeus que passaram pelos campos de concentração da Alemanha nazi. Já para Svetlana Alexievich, que publicou Vozes de Chernobyl em 1997, este século marcou não só o fim da ilusão da União Soviética como o fim de uma ilusão bastante maior, a de que, enquanto seres humanos, não tínhamos o poder de destruir o planeta em que vivemos.
São vários os escritores e filósofos dos séculos XX e XXI que falam na existência de um mundo antes e depois do Holocausto. Para Primo Levi, que foi capturado pelos nazis aos 24 anos de idade, pouco tempo depois de se formar em Química pela Universidade de Turim, a experiência nos campos de concentração ditou o resto da sua vida. Por sua vez, escrever sobre o seu tempo lá foi, para si, não uma escolha mas uma urgência. Ainda que admita a fragilidade das palavras para expressar algo tão atroz como a demolição (física e espiritual) de um Homem, Levi é autor de alguns dos relatos mais importantes e comoventes deste que foi um dos maiores atentados à vida e à dignidade humanas de sempre. Entre os inúmeros livros que Levi escreveu sobre o assunto, destaca-se, precisamente, Se isto é um homem. Escrito como uma tentativa de libertação interior (a qual poderá não ter obtido, uma vez que há suspeitas de que a causa da sua morte tenha sido o suicídio), esta é uma leitura essencial para compreender a nossa História e salvaguardar o nosso futuro.
Trazendo à memória a Franz Kafka, “um livro deve ser o machado que quebra o mar gelado em nós”. É precisamente isso que Se isto é um homem faz ao dar uma voz pessoal à tragédia que matou cerca de 6 milhões de judeus. Num mundo, como aquele em que vivemos hoje, no qual as notícias de tragédias são diárias e o risco de serem votadas à indiferença elevado, relatos como este, que atribuem uma dimensão humana àquilo que, de outra forma, seria reduzido a uma contabilização de números de vítimas e sobreviventes, são cada vez mais importantes. Levi mergulha nas suas memórias e arrasta-nos até ao âmago de uma dor que poucos homens sentiram e viveram para contar – a de ser reduzido a nada, levando a refletir sobre aquilo que nos permite continuar a ser humanos após perdermos tudo.
Para além do poderoso relato da sua experiência, outro aspeto que torna esta uma leitura obrigatória são os avisos feitos às gerações vindouras. Para o autor, um país é tão mais civilizado quanto mais as suas leis previnam que um homem fraco se torne demasiado fraco e um homem poderoso se torne demasiado poderoso. Sendo assim, um dos alertas mais importantes que faz aos seus leitores é o da importância, absolutamente crucial nos dias de hoje, de desconfiar dos líderes carismáticos e autoproclamados profetas. À luz do atual clima político vivido em países como os EUA ou o Brasil, o apelo de Levi para que renunciemos a verdades que nos são reveladas por outros (por muito que estas nos possam ser convenientes) e que confiemos apenas naquelas que conseguimos confirmar a partir do estudo e da razão, ganha uma urgência renovada.
Primo Levi conheceu melhor que muitos os perigos de ignorar estes avisos. Contudo, Se isto é um homem não é um livro totalmente desprovido de esperança. Nele há também espaço para uma beleza e um lirismo que são o que o destaca de outros livros sobre o tema. Levi ensina-nos que, mesmo na mais miserável das condições, existe sempre uma réstia de esperança e de beleza que nos impedem de atingir a miséria absoluta. Nas suas palavras: “Todos descobrem, mais tarde ou mais cedo na vida, que a felicidade perfeita não é realizável, mas poucos se detêm a pensar na consideração oposta: que também uma infelicidade perfeita é, igualmente, não realizável. Os momentos que se opõem à realização de ambos os estados-limites são da mesma natureza: derivam da nossa condição humana, que é inimiga de tudo o que é infinito.”
É neste ponto que os livros de Primo Levi e Svetlana Alexievich, em primeiro lugar, se tocam. Em Vozes de Chernobyl, no qual Svetlana dá a palavra aos sobreviventes do desastre nuclear que chocou o mundo na década de 80, os testemunhos, embora dados por pessoas comuns são, frequentemente, de uma beleza e profundidade tais que tal só pode ser explicado pela autora quando diz: “Ao lado de Chernobyl, todos começavam a filosofar.” Para além disso, existem ainda momentos de leveza e até de humor. Embora seja uma leitura muito difícil, pela natureza dos relatos, as chamadas “piadas de Chernobyl”, (como as há, igualmente, sobre o Holocausto), contadas por diversos testemunhos, são um dos aspetos mais surpreendentes do livro. Estas, em vez de quebrarem o tom sério do livro, ajudam a humanizar ainda mais o impacto desta tragédia, atuando como demonstração incrível de como os humanos procuram atenuar a dureza da consciência da morte.
Se Se isto é um Homem descreve a facilidade com que um homem pode destruir outro, Vozes de Chernobyl é uma chamada de atenção para a capacidade que nós, enquanto seres humanos, temos de aniquilar a Vida. Deste modo, também o livro de Svetlana, embora se debruce sobre um evento do passado, contém mensagens muito importantes para o nosso presente e futuro. Para a autora, Chernobyl marca a passagem para uma nova era: o final da era das guerras e o início da era das catástrofes. Antes do desastre nuclear de Chernobyl, o inimigo tinha um rosto que podia ser combatido e vencido; depois de Chernobyl, o inimigo está em todo o lado: na água que bebemos, na comida que comemos, no ar que respiramos … Isto leva-nos a pensar não só na ameaça nuclear que continua a ser um perigo muito real na atualidade, mas também noutro desafio muito preocupante com que a nossa geração, e todas as que virão depois de nós, terão que lidar: o das alterações climáticas. Sabendo que estamos a caminhar para um futuro em que o planeta em que vivemos pode deixar de ser um ambiente seguro para a vida tal como a conhecemos, é impossível não nos colocarmos na posição dos “chernobylianos” que, confrontados com uma unidade de tempo tão grande que não conseguimos sequer conceber – aproximadamente, 20.000 anos, o tempo que levará até Chernobyl ser novamente habitável -, tiveram que abandonar as suas casas, para sempre.
O Homem tem diferentes formas de lidar com esse “para sempre” que é, por um lado, o resto das vidas dos “chernobylianos” que nunca mais poderão regressar às suas casas e, por outro, a morte – esse “país desconhecido de cujas fronteiras nenhum viajante regressa”, como a definiu Shakespeare. Tanto no livro de Levi como no de Svetlana, são descritas diferentes formas de relação do Homem com a consciência da morte: por um lado, o silêncio e a impossibilidade de falar sobre coisas que são indescritíveis, por outro, no extremo oposto, a urgência em falar e, ainda, o humor. Como sugere Ricardo Araújo Pereira no seu quase manual de escrita humorística A Doença, o Sofrimento e a Morte entram num Bar (2016): “O Homem é o único que ri porque também é o único que tem consciência da sua própria extinção. Os animais desconhecem que vão morrer, e Deus sabe que é eterno.” E poucas pessoas sentiram essa consciência como as vítimas do Holocausto e de Chernobyl.
Outra forma ainda de lidar com esse país desconhecido, é através da arte e da beleza. Os testemunhos de ambos os livros procuram refúgio nestas coisas que são, afinal, o que nos mantém humanos quando perdemos tudo o resto. Em Se isto é um homem, Primo Levi recorda os versos do Canto de Ulisses, da Divina Comédia de Dante Alighieri, como forma de se agarrar a um último resquício de beleza e, a partir dela, manter qualquer fragmento da sua identidade, enquanto o seu corpo e espírito começam a definhar. Por sua vez, os testemunhos de Vozes de Chernobyl procuram consolo nos livros de Tolstói e Dostoiévski, mas lamentam que os mesmos não os tenham preparado para a situação que atravessaram.
Apesar de tanto Dante como os autores russos do século XIX não terem conhecido as adversidades pelas quais Primo Levi e os autores dos testemunhos do livro de Svetlana passaram, e embora daqui a 30, 50 anos, possamos estar a enfrentar perigos de uma natureza que os autores de hoje não conseguem imaginar, a literatura, e a arte no geral, continuam a ser a melhor forma de sentirmos que não estamos sós. Por muito que os contextos possam ser radicalmente diferentes, os sentimentos dos Homens são iguais e alguém, noutro tempo e noutra parte do mundo, soube pôr em palavras exatamente aquilo que estamos a sentir. Recordando as palavras de um dos mais importantes romancistas do século XX, F. Scott Fitzgerald: “Essa é parte da beleza da literatura. Descobrimos que os nossos anseios são anseios universais, que não estamos sozinhos e isolados de ninguém. Pertencemos”. (“That is part of the beauty of all literature. You discover that your longings are universal longings, that you’re not lonely and isolated from anyone. You belong.”)
Artigo de: Beatriz Sertório
A Beatriz é licenciada em Línguas e Literaturas na vertente de Literatura e Artes e começou a trabalhar na sede da Bertrand, onde está ainda. O seu primeiro amor é a literatura mas logo a seguir vem a música e o cinema. Para além disso, sempre adorou escrever e ainda teve durante uns tempos um blogue dedicado à cultura.