Se não há Super-Homem, não vale a pena voar
Quando era um miúdo de cabelo rapado e jardineiras amarelas, conseguia voar.
Lembro-me vivamente de levitar por cima do chão de madeira da minha sala, lentamente avançando até à janela do fundo. Lembro-me de me deixar cair do terraço para lenta e levemente pairar até os meus pés pousarem no chão da rua.
Lembro-me de perguntar à minha tia numa viagem de carro quem segurava a lua, e de ser tanta acuriosidade e a expectativa de que a resposta fosse algo tão fascinante como «o Super-Homem» que preferi fazer ouvidos moucos à resposta dela, com medo de ficar desiludido.
Mas lembro-me de me lembrar que conseguia voar e que não precisava da ajuda dela para responder a esta pergunta- podia simplesmente voar até à lua e ver pelos meus próprios olhos. Fiz planos para o fazer, mas ainda dormia com uma luz de presença (apesar de já preparar o meu próprio pequeno-almoço) e tive medo de sair de casa à noite para ir à lua. Podia não ser o Super-Homem. Podia ser um lobisomem ou o monstro que até agora achava que vivia dentro do meu armário de correr. Se calhar esse monstro viva na lua, e se ele vivia na lua e não no meu armário, podia dormir em paz, sem medo do escuro.
O que mete medo na viagem à lua é o monstro, e não o escuro.
Mas nunca cheguei de facto a ir à lua. Ainda tinham sido poucos os telhados e as copas de árvores que tinha explorado na rua em frente à minha casa, e a minha mãe sempre me ensinou a não por a carroça à frente dos bois. Tinha de dar um passo de cada vez, e ainda nem sabia de cor o caminho de casa da minha avó até à minha casa! O que faria se me perdesse ao voltar da lua? Nem sabia sequer o que havia no caminho! Podiam ser mais monstros ou mais escuro.
Imaginei então que a lua era um candeeiro, presa por um fio elétrico ao teto que é a noite. Assim não precisava de ir lá, porque já tinha candeeiros em casa e sabia como eram os fios. Se não era para conhecer o Super-Homem, não valia a pena ir à lua…
Depois cresci e aprendi sobre coisas como a gravidade e o sistema solar. De repente a lua tornava-se tão menos interessante que a versão do Super-Homem… Até menos interessante que a versão conservadora do fio elétrico! Qualquer coisa que imaginara era mais interessante que aquela que os meus professores faziam questão em que eu acreditasse: «Está simplesmente lá, a rodopiar à nossa volta».
E assim perdi o interesse em voar.
Se não há Super-Homem, se não há sequer o mísero fio elétrico, a lua serve para quê? Para nada! E chateado fui dormir sem voar. E não voltei a voar até hoje.
Se não há Super-Homem, não vale a pena voar.