Se numa noite de inverno um cronista

por Leonardo Cruz,    10 Janeiro, 2023
Se numa noite de inverno um cronista
Ilustração de Natacha Costa Pereira
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À minha frente um soldado carrega aos ombros um companheiro ferido. Por entre a selva densa o caminho é penoso e demorado. Na face o esgar do esforço, vontade e heroísmo, contrasta com a inércia do homem transportado. O sol já vai baixo e a ameaça da noite está presente no silêncio dos pássaros. De súbito, vultos ao longe. Os arbustos parecem mexer-se na dança alucinante do horizonte. O soldado inicia a fuga pela vida, pelas vidas, o derradeiro esforço do herói. Corre, apesar da dor, apesar do sangue, a lama puxa-lhe os passos para o chão, no entanto o guerreiro move-se carregando o peso do mundo: Ares e Atlas num só. Um barulho repentino esmaga a atmosfera, sombras atravessam o céu à velocidade da luz; ouvem-se tiros, rajadas, explosões. O soldado tropeça na raiz de uma árvore, o corpo do amigo ferido é projetado no ar. Os arbustos transformam-se em inimigos camuflados. O corpo cai no chão.

Podemos confirmar a existência de um falecimento.

Um ser estranho e viscoso ataca o homem que grita e escabuja, tenta soltar-se, as mãos arranham o seu corpo negro, peganhento, até que uma onda de sangue, vísceras e bocadinhos de carne põe fim ao sofrimento do desgraçado. O extraterrestre não perde tempo, o seu único objectivo é matar todos os humanos — lança-se em direção ao negrume dos corredores de metal, em busca da próxima vítima.

Temos a informação que o cadáver já se encontrava morto, perdão, que o morto já se encontrava sem vid…peço imensa desculpa, que o homem já se encontrava efetivamente sem vida.

Ressurreição é o tema de hoje: bem-vindos à nossa sessão deste fim-de-semana, irmãos, temos pela frente um novo ano difícil, mas com a ajuda do Senhor e muita fé, com certeza será um ano de muito amor. Faça um pouco de silêncio agora, irmão ou irmã. Consegue ouvir o Senhor dentro do seu coração?

Eu quero a verdade! Tu não aguentas a verdade!

As barbas do jovem de cabelo comprido parecem conter organismos vivos. Pelo ar esfomeado, já teriam sido ingeridos, se fosse o caso. Prepara uma armadilha artesanal no meio da neve e diz espero que a Jane esteja a ter melhor sorte.

Uma mulher morena de quarenta e poucos anos desperta-me a atenção. Sou presa fácil para o seu olhar composto de insinuantes amêndoas negras, sublinhado pelos lábios pintados com batom vermelho-púrpura, a mesma cor do vestido de veludo justo que anuncia as suas curvas. Num passo lento e sensual desce a rua, aproximando-se de um automóvel.

Ao volante deste fantástico crossover nipónico, diz o condutor, a vida corre suave. Dispõe de um motor elétrico que se auto-carrega através da locomoção proporcionada por um outro motor, a combustão, por sua vez alimentado a gasolina, aquilo que a marca apresenta como “o melhor de dois mundos”.

É de outro mundo essa energia que vem das bancadas, fantástico o ambiente nesta noite. Estão reunidas as condições para assistir…

A morena está agora num apartamento em roupa interior. Desloca-se à cozinha para beber um copo de água antes de dormir. Antecipo um problema grave nas suas feições preocupadas. Os canos não funcionam. Aborrecida, a bela dona de casa usa o seu telefone topo de gama para contactar um canalizador. Com a preocupação, a moça aparenta ter ficado ainda mais encalorada. Lamento não haver na minha cidade este tipo de serviço, porquanto menos de trinta segundos depois da chamada, um rapaz alto e musculado munido de uma caixa de ferramentas já se encontrava à porta da vivenda.

Há um atraso, os atletas estão prontos e cinquenta mil pessoas anseiam pelo espetáculo, estamos a tentar perceber o que se passa. 

A mulher magríssima e com ar seboso inventa uma fogueira junto a uma cabana de madeira tosca, na ponta rochosa do que aparenta ser uma ilha deserta no norte do planeta. Sussurra um lamento orgulhoso: é o meu quinquagésimo dia.

O sétimo dia da semana judaico-cristã, meus irmãos, o sábado, este sábado é o dia do Senhor.

O senhor também está com calor? — pergunta a morena que aparentemente já tem água nos canos. De uma forma algo inesperada e talvez um pouco fora de contexto de uma habitual visita de trabalho para arranjos relacionados com canalização ou outros, a mulher despe-se totalmente.

Aí vai Nakamura a toda a velocidade, está isolado, tem tudo para ser feliz, pode ser agora.

Parece que este japonês encorpado perde um pouco a força nas subidas. Mas em termos de agilidade não se apresenta nada mal, face aos concorrentes.

Desvio o olhar e dou por mim sendo observado por um animal bizarro de pele de cobertor amarelo e duplo queixo, que me encara com desdém. O seu olhar estremunhado diz-me que desperdicei a última noite que tinha para escrever a crónica da semana. Chega! Se numa noite de inverno um cronista decide a primeira resolução do ano, não pode ser outra que não esta: retirar o espelho do lado da televisão.

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