Sem dinheiro, há donos que deixam de comer para alimentar os seus animais domésticos
O agravar das dificuldades económicas tem levado donos de animais a deixar de comer para poderem alimentar os seus cães ou gatos, que veem como família e são, muitas vezes, a única companhia para combater a solidão.
Sandra Cruz vive sozinha em Marvila (Lisboa) com a Luna, o Black e a Kitty, os três cães que trata por “filhos mais novos”. À Lusa contou que “já aconteceu muitas vezes” ficar sem comer porque o pouco dinheiro que tinha não chegava para todos, e optou sempre por alimentar os animais. A história de Sandra não é um caso isolado.
“Chegam-nos aqui vários pedidos de pessoas em situação de fragilidade económica em que o animal faz parte do seio familiar. Há pessoas que deixam de comer para alimentar o animal. Nós não queremos pessoas em situação de carência alimentar ou outra carência económica”, disse à Lusa Vanessa Madeira, assistente social da Junta de Freguesia de Marvila.
Consciente do fenómeno, Marvila decidiu integrar a lista de parceiros da Animalife, uma associação sem fins lucrativos que apoia pessoas carenciadas para que não abandonem os seus bichos. O apoio pode ir desde ração a consultas veterinárias gratuitas mas também passear com os animais, quando os donos têm dificuldades de mobilidade.
Em Marvila, “só até maio deste ano, apareceram 50 famílias” que entretanto já foram reencaminhadas para as equipas da Animalife, compostas por veterinários e assistentes sociais, revelou Vanessa Madeira.
Esta quarta-feira, enquanto a assistente social Bárbara Macedo atendia pessoas numa das salas da junta de freguesia, uns metros abaixo, a veterinária Rute não tinha mãos a medir no Salão de Festas de Vale Fundão, que estava transformado numa clínica veterinária.
Do lado de fora do consultório de Rute Porém, o átrio do edifício fazia as vezes de sala de espera, que se foi enchendo de pacientes e animais. Entre eles, estava Sandra Cruz e os seus três cães.
À Lusa explicou que é difícil pagar uma consulta de veterinário. Antes de conhecer a Animalife, uma das suas cadelas foi operada e Sandra foi confrontada com uma conta de “500 e tal euros”: “Tive de vender coisas que tinha em casa”, recordou.
Agora conta com Rute Porém, que todos os dias está numa das “clínicas” improvisadas das 15 juntas de freguesias da cidade de Lisboa com quem a associação já celebrou protocolos. Atualmente, a associação apoia já mais de 700 famílias e cerca de 1.500 animais em todo o país.
A prioridade é regularizar os procedimentos obrigatórios por lei, tais como as vacinas, mas também tentar convencer os donos para esterilizar os animais, mas os veterinários acabam sempre por ajudar no que é preciso.
“Temos animais que têm as vacinas atrasadas alguns meses, mas já apanhei muitos animais com cinco ou sete anos que nunca tinham ido ao veterinário porque os donos nunca tinham tido a possibilidade de o fazer”, contou Rute Porém.
Os utentes de Rute são pessoas com grandes fragilidades económicas ou emocionais: “Temos também casos de pessoas com doenças crónicas, vítimas de violência doméstica e até pessoas que apenas tiveram o azar de ter dado um trambolhão, terem ficado sem emprego e, de repente, é como uma avalanche em que vai tudo por ali abaixo”.
Foi o que aconteceu a Carla Tavares. Tinha dois empregos — num hospital e num hipermercado — quando acolheu os três gatos que diz serem a sua “família e companhia”, mas uma doença atirou-a para a cama de onde saiu para andar apenas de muletas.
“Se não tivesse a ajuda a Animalife e de pessoas amigas era impossível. As despesas são certas, a reforma é pequena. No banco, a gente nunca sabe o que nos cai cada mês. Esse mês é um valor, para o mês que vem é outro, basta a gente atrasar-se um dia e já está a pagar juros, portanto é muito difícil. Mas eu não me desfaço deles, porque para mim são família. A gente também não dá à nossa família. Quando tem um problema, não pega num filho, não pega numa mãe, e não os descarta”, garantiu a mulher que tenta viver com pouco mais de 100 euros.
Carla Tavares também já deixou de comer para dar aos gatos, mas houve um dia em que temeu estar a prejudicar a saúde dos animais e pensou em mandá-los para a Casa dos Animais de Lisboa: “Foi a única altura em que desesperei”, recordou.
Sofia Baptista, médica veterinária e chefe de divisão da Casa dos Animais de Lisboa (CAL) constatou que “desde o ano passado, e sobretudo este ano, aumentaram os pedidos” para receber animais, havendo casos relacionados com ações de despejo e de vulnerabilidade económica.
A veterinária garante que muitas vezes as pessoas querem ficar com os animais e, nesses casos, a CAL contacta a Animalife para fazer o acompanhamento social e animal do agregado familiar, “porque cada vez mais as famílias são pessoas e animais”.
Foi o que aconteceu com Florinda Amaral quando a senhoria não lhe renovou o contrato de arrendamento. De repente, descobriu que tinha de procurar uma casa nova, tendo vários animais a cargo.
“Eu estava num estado explosivo. A minha depressão estava ao rubro, o meu psiquiatra não me conseguia acalmar, porque eu só chorava e só queria arranjar casa a todo custo”, contou à Lusa, explicando que a equipa da Animalife foi a “tábua de salvação“.
A assistente social ajudou-a a procurar casa e a encontrar uma solução temporária para deixar os animais. Florinda Amaral não esquece a ajuda de Bárbara Macedo, que a conseguiu deixar mais calma ao demonstrar uma especial atenção também com os seus animais.
“Para garantirmos o bem-estar dos animais é preciso que as pessoas também estejam bem, portanto, a minha atenção é mais nesta componente social”, explicou Bárbara Macedo.
A assistente social lembrou ainda que muitos dos utentes são idosos com animais também já envelhecidos e que esta ligação é essencial “no combate ao isolamento e à solidão”.
Por isso, a Animalife tem também um serviço em que vai a casa das pessoas para proceder a atos veterinários mas também para dar apoio social e até, se for preciso, passear os animais.
As famílias selecionadas recebem também um cartão eletrónico, que foi criado pela Animalife em parceria com a Sonae, que é carregado todos os meses com um valor que varia consoante o número de animais, para que possam comprar comida para os seus bichos. Este ano, foram entregues mais de 55 mil euros, adiantou o responsável da AnimalLife, Rodrigo Livreiro.